quinta-feira, 9 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (21)


O senhor Semedo andou todo o dia macambúzio, não sabia bem porquê. Talvez fosse o longo período de reclusão que voltava a azedar-lhe o humor. Os raros momentos em que saía à rua deviam-se apenas a necessidades prementes e inadiáveis. Nunca conversava com ninguém, trocando apenas as palavras indispensáveis com o merceeiro ou a farmacêutica. Assim que resolvia o que tinha a tratar, voltava num ápice para casa. O resto do tempo, ficava sempre sozinho, trancado no apartamento. Por isso é que os momentos com o Jóquer e as restantes cartas do baralho eram tão importantes para si.
Foi com estas cogitações que passou a manhã e depois a tarde. Até que chegou a hora do encontro. Colocou o espelho no sítio do costume e espalhou as cartas sobre a mesa. Assim que o Jóquer chegou, virou uma delas, de imediato.
- Ó diabo! - reagiu o Jóquer. - Hoje, estás de mau humor.
- Pois. Nem me digas nada. Há dias assim, que queres? - respondeu, abatido, o dono da casa.
- Vamos lá ouvir a nossa história, que isso há-de passar - riu-se o outro.

A carta escolhida, o Cinco de Ouros, esperou que os dois amigos acabassem a conversa e depois rematou:
- Parece que me cabe a mim elevar a moral das tropas. Muito bem, então. A história que trago hoje é tão pateta que vos obrigará a rir, quer queirais quer não. E a mensagem que encerra é bastante adequada ao momento. «Não vale a pena morrer de véspera», como dizia o filósofo... Ora aqui vai, então:

«O agoiro da cabra macabra»

- Vem aí o fim do mundo!
Berra, macabra,
Do alto da colina,
Uma velha cabra,
Ao rebanho que rumina
No vale, lá ao fundo.

Mas os de baixo
Não se deixam alarmar.
Fingem-se surdos ao alarido
E continuam a pastar
As verdes ervas do vale florido.

- Vem aí o fim do mundo!
Insiste, agoirenta,
A velha cabra da serra.
- Vem aí o fim do mundo!
Grita a doidivana
Aos outros bichos da terra.

Salta e berra com tal gana,
Que se desequilibra e rebola,
Bate num penedo e rebenta,
Indo acabar na caçarola,
Cozinhada em chanfana.

Tinha razão, lá no fundo,
A velha cabra macabra,
Que jaz dentro da panela:
Vinha aí o fim do mundo,
Mas apenas para ela.

Quando a quina acabou de recitar, o senhor Semedo deu uma sonora gargalhada e suspirou de alívio.
- Obrigado, meus amigos, por alegrarem os meus dias - disse ele. - Obrigado, obrigado.
O Jóquer e o Cinco de Ouros ficaram um pouco embaraçados, respondendo em uníssono:
- De nada, ora essa! É para isso que servem os amigos.

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