sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A salsicha albina


Uma salsicha comum vivia amargurada com o estranho facto de sofrer de albinismo. Enquanto as suas irmãs exibiam uma tez digna dos efeitos de um Verão soalheiro, ela, por sua vez, era pálida e mirrada como um espargo desidratado. Já tinha tentado de tudo, mas não havia processo de bronzeamento - natural ou artificial - que lhe pudesse valer. Albina nascera, albina haveria de fenecer.
As outras salsichas, embora não se aproveitassem do facto para abusar dela, não conseguiam passar sem, ocasionalmente, fazer alguns comentários jocosos. O que irritava ainda mais a albina, que achava a atitude das irmãs de uma condescendência insuportável.
Se por frustração ou por inveja, não se sabe. O que é certo é que o deslavado enchido acabou por se tornar no manda-chuva da salsicharia. E, durante anos, vem cozinhando acordos e apoios para se manter no poleiro, hipotecando a sua consciência junto da clique carnívora que vive à custa do sangue, do suor e das lágrimas das suas irmãs.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

O anúncio


Tudo quanto é profissional da «calhandrice» nacional estava a postos para o anúncio.
A reunião dos carnívoros continuava para lá da hora anunciada e só após o seu termo a comunicação teria lugar. Até as moscas se impacientavam nos cafés, zumbindo, neuróticas, acima das melenas dos clientes. E o raio do anúncio que nunca mais vinha…
Nas cantinas, bares e restaurantes da populaça ou nos esconsos das cozinhas domésticas faziam-se vaticínios e apostas. A velha truta cínica e dura seria refogada em molho de vinho branco… Não, diziam alguns, seria assada ao natural ou frita em azeite virgem. Seria estufada ou cozida, apostavam outros.
Embora com opiniões tão diversas sobre a metodologia a adoptar, muita gente achava possível um «happy end» culinário que desse fim à prosápia de tão incómodo ser.
Engano deles. Quando, finalmente, o anúncio chegou, todas as expectativas caíram por terra. Nem refogada, nem assada, nem frita, nem estufada, nem cozida. A velha truta cínica e dura ia continuar a dar à barbatana no tal riacho de montanha onde era rainha e senhora.
Pois é, esqueciam-se que os carnívoros são obstinados e calculistas e apreciam outras iguarias: preferem ferrar a dentuça no pescoço dos animais de sangue quente.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A truta anarquista que chegou a ministra


Qual Nemo, qual Pi? O peixe mais famoso deste jardim à beira mar plantado não dá à barbatana nas águas do oceano, mas num modesto córrego de montanha. É uma velha truta, cínica e dura, que governa uma boa parte dos espécimes piscícolas do dito riacho. Segundo uma versão veiculada por certas más-línguas (de bacalhau), a dita criatura militou, em jovem, nas minguadas hostes que vão mantendo acesa a chama do ideal libertário. No entanto, depois de um longo e tortuoso percurso, em que a sua ascensão académica foi inversamente proporcional à coerência ideológica, a dita truta acabou por se render ao doce fascínio do poder, aceitando um cargo ministerial. Constituiu uma trupe de ajudantes reverentes e acéfalos, entregando o comando intermédio a dois carapaus de corrida manhosos. E assim ficou a velha a mandar nos seus iguais, que passou a tratar com a desfaçatez e sobranceria próprias de quem ascende a tão altos cargos.
Ora, a dita cuja teve uma autêntica epifania quando tropeçou num obscuro manual de culinária dos tempos da «outra senhora». Depois de ler e reler as bolorentas receitas, capazes de encher de colesterol maléfico as artérias de um asceta vegetariano, a agora ministra decidiu do tratamento a dar aos outros peixes seus subordinados para poderem circular no tal riacho de montanha. Primeiro, dividiu-os em dois cardumes diferenciados. Uns seriam peixes-titulares, os outros apenas peixes-peixes. Os primeiros mandariam nos segundos e os segundos obedeceriam aos primeiros. Para além disso, seriam todos, sem excepção, sujeitos a um processo culinário complexo e burocrático em que o principal procedimento raiava a mais perversa crueldade: seriam, entre outras coisas, «grelhados» até à exaustão.
A princípio, as outras trutas, bogas, barbos, ruivacos e afins nem sabiam que pensar nem que dizer. Examinaram e dissecaram as arrevesadas directivas da truta e seus carapaus de estimação e chegaram à triste conclusão de que esta, ao contrário dos discursos inflamados, não estava absolutamente nada interessada na melhoria da qualidade do seu desempenho natatório. O seu propósito era apenas o de poupar uns tostõezitos no orçamento do governo carnívoro de que fazia parte.
Os visados começaram por esboçar alguns protestos tímidos, que suscitaram um violento contra-ataque da velha truta cínica e dura. Intentou até virar contra estes a restante fauna aquática da região, embora com reduzido sucesso.
Até que, recorrendo ao seu direito à indignação, os condenados à que ficou conhecida como «tortura da grelha» decidiram manifestar-se publicamente.
Cem mil. É verdade. Cem mil trutas, bogas, barbos, ruivacos e afins inundaram as artérias do riacho num ruidoso protesto. Mas, por incrível que pareça, a velha não desarmou. Ela, na infalibilidade da sua imensa sabedoria, decidira que seriam «grelhados» e «regrelhados» e não havia retorno da decisão.
Veio o Verão, a migração sazonal, a desova e restantes etapas da proliferação das espécies exóticas e endémicas e a coisa acalmou um pouco. No Outono, no entanto, os sentenciados não baixaram os braços e voltaram a encher as artérias do riacho com os seus protestos. Desta vez, foram cento e vinte mil. É verdade. Cento e vinte mil trutas, bogas, barbos, ruivacos e afins.
Mas a velha continua na sua. De prepotência em prepotência, de mentira em mentira, os carapaus de corrida e respectiva mestra divertem-se a testar o que resta da paciência dos outros peixes. Daí que estes não terão outro remédio senão cerrar fileiras e correr com o trio até ao mar. Pode ser que um tubarão esfomeado tropece neles e os almoce. Que lhe façam bom proveito!