terça-feira, 7 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (19)


O Jóquer trazia um sorvete na mão, quando apareceu no espelho, em frente ao senhor Semedo.
- Andas a tratar-te bem - espicaçou-o este, com um risinho malandro.
- «Gelato al pistacchio», directamente de Itália. Tenho aproveitado para saltar de espelho em espelho, por esse mundo fora. Já estava com saudades das minhas viagens. E visto que tu não podes ir, vou eu... - respondeu este, começando a contar alguns pormenores mais relevantes dos seus passeios.
O dono da casa agradeceu o relato e depois lembrou que eram horas de escolher uma carta para a história dessa noite. Feitas as necessárias diligências, saiu um Dez de Espadas.
A carta de jogar fez uma saudação e informou que a história que trazia punha em causa a imagem negativa de um dos personagens mais conhecidos das histórias tradicionais: o lobo.
- Bem, acho que o lobo das histórias é um lobo particularmente malvado - argumentou o senhor Semedo. - Por isso, o seu nome vem sempre acompanhado por um adjectivo. É o Lobo Mau.
- Seja! - retorquiu o Dez de Espadas. - No entanto, essa imagem de maldade acaba por atingir toda a espécie, o que é injusto. O trovador da minha corte escreveu umas rimas a esse propósito, apresentando a perspectiva do personagem.
E começou a recitar um poema a que deu o título «A queixa do senhor lobo».


Não contem comigo! – disse o senhor lobo -.
Estou farto e cansado de fazer de bobo.

Não quero saber da tal capuchinho,
nem das más acções do pastor tontinho,
nem dos três leitões parvos e embirrantes,
de cordeiros sonsos e cabras pedantes.

Estou farto de velhas tolas e fingidas,
de cachorros ferozes e raposas sabidas,
de lenhadores e caçadores armados
com paus, espingardas, facas e machados.

Estou farto que me ponham pedras na barriga,
que me batam, que me espetem,
que me escaldem, que me cozam,
que me matem e esfolem à maneira antiga.

Por isso, aqui estou e digo e redigo:
Estou farto e cansado, não contem comigo!

Dizem que sou bicho cruel e feroz
e um predador perverso e atroz.
Pois eu, na verdade, sou fiel marido,
um pai dedicado, amoroso e querido.

Se caço outros bichos, com toda a certeza,
é porque é essa a minha natureza.
Tenho de comer e criar os filhos,
por isso me meto, por vezes, em sarilhos.

Mas sou resistente, astuto e ligeiro;
a correr no campo, sou sempre o primeiro.
Vivo numa toca com os meus parentes,
onde procriamos e dormimos quentes.

Nas noites de lua, quando ela está cheia,
ouve-se um uivo chamando a alcateia.
É o nosso líder, convocando o clã,
para fazer a festa, até ser manhã.

Por isso, não quero saber da história
onde o mau sou eu e sou castigado,
espetado e escaldado, cozido e assado,
morto e esfolado, sem honra nem glória.

Olhem para os homens com a sua guerra,
Se não são mais lobos que os lobos da terra.
Por isso, aqui estou e digo e redigo:
Estou farto e cansado, não contem comigo!

O Jóquer e o senhor Semedo bateram palmas e endereçaram as felicitações ao autor.
- De facto - disse o Jóquer -, vistas as coisas nesta perspectiva, o coitado do lobo está coberto de razão.
- Sim - acrescentou o dono da casa. - Embora entenda o papel que lhe atribuíram, num tempo em que a proximidade e extensão das florestas, cheias de animais ferozes, tornava a vida das pessoas num perigo constante. Mas hoje já não é assim e espero que os escritores modernos apresentem uma imagem mais positiva deste animal tão nobre.

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