domingo, 12 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (24)


- Foi muito bonita, a história de ontem - disse o senhor Semedo ao Jóquer, quando este chegou. - Faz-nos tomar consciência de que a raiz dos nossos medos está dentro da nossa cabeça.
Este acenou em concordância e acrescentou:
- Somos nós que alimentamos os monstros que nos aterrorizam. Por isso, todos temos poderes para os derrotar. Precisamos apenas de um bocadinho de coragem, como dizia a Rainha de Espadas.
- É verdade - comentou o dono da casa, pensativo.
Pouco depois, acrescentou:
- Sabes? Há uma coisa que me intriga. Como é que as cartas de jogar conhecem tantas histórias?
O Jóquer riu-se:
- Isso não é difícil de explicar. As cartas de jogar são muito antigas, conhecem e são conhecidas no mundo inteiro e lidam com gente de todas as gerações e classes sociais. A propósito, soube há pouco que hoje iremos ter uma surpresa do outro lado do mundo.
O senhor Semedo ficou curiosíssimo, mas o Jóquer recusou-se a adiantar mais o assunto.
- Se te dissesse, deixava de ser surpresa - justificou ele. - Primeiro, temos de cumprir o nosso ritual. Espalha as cartas na mesa e escolhe uma. Depois, logo verás.
A carta escolhida ao acaso foi o Dez de Copas, que fez uma vénia cheia de salamaleques e iniciou assim o seu discurso:
- Os povos do Oriente têm uma relação muito especial com o sobrenatural. Sendo a morte entendida como estado de transição e de evolução, a convivência com as almas dos falecidos é assumida com toda a naturalidade. A história que vos trago vem do Japão e tem a ver com este assunto. Começa assim...

Há muito, muito tempo,  no Japão, morava numa aldeia da montanha um velho sem família. Para sobreviver, apanhava lenha e vendia-a na cidade.
Um dia, depois de vender a sua lenha mais cedo do que o costume, o velho retornou a casa. Era Primavera, a tarde estava agradável e havia belas flores bordejando o caminho.
Como o sol ainda ia alto, sentou-se numa pedra na beira da estrada, a apreciar a paisagem. Pegou na sua cabaça e começou a beber o vinho de arroz que tinha comprado. Foi então que reparou num osso humano entre a erva.
Olhando melhor, viu que fazia parte de um esqueleto.
E o homem disse para si próprio:
- É muito triste que alguém tenha morrido aqui, sem que ninguém soubesse disso. Quem quer que fosse, deve sentir-se muito solitário.
Derramando um pouco de vinho de arroz sobre o esqueleto, saudou:
- Bebe comigo um pouco de vinho, amigo, e aprecia esta bela vista.
Pouco depois, meditando nas injustiças da vida, voltou a pôr-se a caminho de casa.
No dia seguinte, quando tornou a passar por aquele lugar para vender lenha, encontrou uma bela rapariga, que lhe disse:
- Obrigado, querido velho. Ontem, foste muito gentil comigo, partilhando o teu vinho de arroz. Faz hoje exactamente três anos que, quando caminhava por esta estrada, me senti mal e aqui morri. Desde então, nunca ninguém me encontrou e eu sentia-me muito sozinha. Até ontem. Pela primeira vez, passei um bom bocado contigo, bebendo vinho e admirando as flores.
Espantado com aquela aparição, o velho perguntou-lhe quem era.
- Os meus pais moram na cidade - respondeu a donzela -. Por favor, leva-me contigo para os ver.
O velho acompanhou a moça até à casa dos pais. Lá dentro, estava uma pequena multidão, participando numa cerimónia a propósito do terceiro aniversário do seu desaparecimento.
A jovem pediu ao velho:
- Segura-te à manga do meu quimono, por favor, que ninguém nos verá.
O velho assim fez e ambos entraram na sala onde um sacerdote orientava a cerimónia.
Ao fundo, estava um altar onde haviam colocado comida e vinho, em oferecimento. A donzela serviu ao velho a comida e o vinho, que este ia saboreando com satisfação.
Ao verem desaparecer as oferendas, o sacerdote e os membros da família da rapariga ficaram espantados.
Depois de comer e beber o máximo que podia, o velho exclamou:
- Foi um verdadeiro banquete, estou cheio!
- Agora, vou ter de sair - disse a donzela - mas peço-te por favor que fiques aqui.
Assim que a rapariga saiu, a figura do velho tornou-se visível. Toda a gente, surpreendida, se aproximou dele, perguntando:
- Quem és tu? Como chegaste aqui?
O velho contou então tudo o que lhe acontecera desde o dia anterior.
Comovidos, os pais da menina agradeceram-lhe:
- Obrigado, obrigado. Encontraste os restos mortais da nossa filha. Ela poderá agora voltar para casa.
A seu pedido, o velho levou os pais até ao caminho da montanha, onde o esqueleto foi recolhido. Estes sentiram-se tristes mas, ao mesmo tempo, aliviados, porque agora sabiam o que lhe tinha acontecido. Nestes casos, o pior de tudo é a incerteza.
Gratos, os pais pediram ao velho que viesse viver com eles e, assim, este teve uma vida confortável, até ao fim dos seus dias.

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