domingo, 19 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (31)


O baralho estava pronto, em cima da mesa, quando chegou o Jóquer, mas onde andaria o dono da casa?
- António? Ó António, onde páras? - chamou o Jóquer.
O senhor Semedo entrou na sala ainda a ajeitar a roupa e a resmungar:
- Bolas, já não se pode ir à casa-de-banho, é? E não gosto que me chames António, é Semedo.
- Desculpa. Como não estavas, fiquei preocupado - respondeu o amigo, com o seu ar trocista. - Lavaste as mãos?
- É evidente! - ralhou o outro. - E agora, sem mais delongas, vou escolher a carta de hoje.
Saiu-lhe o Oito de Copas que avisou:
- A história que vos trago hoje é do domínio do improvável, como a maioria das que já se contaram aqui. No entanto, ao contrário das outras, que tentam fingir a sua veracidade, nesta é assumida do princípio ao fim. Preparados? Então, aqui vai:

Este incidente passou-se numa cidade situada entre nenhures e sítio nenhum, era dia de São Nunca, pela tardinha. Numa ruela escura, havia um bar chamado «Cálice mágico», muito popular na época. Era sexta-feira e começavam a chegar os primeiros clientes, após o encerramento do expediente na maioria dos negócios das redondezas. O primeiro a entrar foi um ogre de nariz avermelhado, que se aproximou do balcão e pediu:
- Ó faxavor! Saia uma bejeca geladinha aqui pró mano.
O empregado serviu-o e pegou num pano para continuar a limpar os copos que acabara de lavar. Pelo canto do olho, ia acompanhando o jogo de catrapimba entre os Chibos da Pastelaria e os Elfos Merceeiros, transmitido através de uma enorme bola de cristal instalada num canto da sala.
Passado um pouco, entraram sete ruidosos anões, entoando uma cançoneta de mau gosto. Também eles foram ao balcão pedir cada um a sua bebida, todas diferentes, sentando-se depois à roda de uma mesa. O mais novo de todos sorveu um golo e contou uma anedota disparatada, fazendo os restantes rir até às lágrimas. E assim continuaram a maior parte da noite.
O ogre, que até aqui tinha estado de pé, encostado ao balcão, a ver o jogo, puxou um banco e sentou-se.
- Ó amigo, há quanto tempo não toma banho? Faça o favor de retirar essas nádegas fedorentas de cima de mim - gritou-lhe este, indignado.
O ogre voltou a levantar-se e fingiu que não era nada com ele.
Nas horas seguintes, foram entrando outros clientes. Veio um centauro, acompanhado de uma sereia dentro de um aquário com rodas, uma bruxa loira, um príncipe desempregado, uma múmia, um javali fardado e vários outros. O ambiente foi ficando cada vez mais cheio, ruidoso e fumarento.
À meia noite, estava prevista a actuação da Fada dos Dentes, que iria interpretar alguns êxitos musicais do momento. Acenderam-se as luzes no minúsculo palco, no canto oposto à bola de cristal, que foi entretanto desligada. O proprietário do estabelecimento, um feiticeiro reformado, subiu ao tablado e anunciou:
- Lamento, meus amigos, mas o programa desta noite teve de ser alterado. A nossa artista convidada foi vítima de um contratempo e não pode vir. É o que dá ter dois empregos...
Os frequentadores do bar começaram a apupar e a assobiar o apresentador, que pediu paciência. Entretanto, alguém do fundo da sala gritou um «Cale-se, mágico!» e foi a risota geral.
Assim que as coisas acalmaram, o dono voltou à carga:
- Bem! Teremos de arranjar um programa de substituição. E assim sendo, desafio os meus amigos a candidatarem-se à primeira Noite de Talentos do Cálice Mágico. O público votará no melhor e o vencedor terá bebidas grátis durante uma semana inteira. Quem é o primeiro a vir apresentar a sua arte?
Ao escutarem qual era o prémio, os presentes reagiram com grande entusiasmo e houve logo vários interessados. Os anões empurraram o mais pequeno para o palco e este apresentou-se:
- Boa noite. O meu nome é Sétimo e vou contar uma anedota. Aqui vai: uma loira ia a atravessar a rua...
Nesse instante, um copo acertou na testa do desgraçado, que ficou com um galo enorme. No meio da confusão gerada, os restantes anões levantaram-se logo, à procura do agressor. Afinal, era uma agressora, a bruxa loira, que ameaçou:
- Se mais alguém se atrever a contar anedotas de loiras, em vez de um copo, leva com um banco.
O banco falante, ao lado do ogre, manifestou-se de imediato:
- Eu não, por favor. Detesto violência.
Foi mais um momento de risota geral, incluindo o pobre Sétimo, que voltou para o lugar, amparado pelos companheiros.
Subiu então ao palco o centauro, para um número de sapateado. Assim que entrou a música, os seus cascos começaram a acompanhar o ritmo, enquanto a plateia batia palmas, a acompanhar. A coisa estava a correr bem, mas uma tábua do estrado cedeu e o concorrente torceu uma pata, voltando para o lugar a coxear. Retornaram os apupos e assobios ao dono do bar, que não teve outro remédio senão anunciar:
- Pronto, pronto, ficamos por aqui. E com um pedido de desculpas da gerência, a partir de agora há bebidas grátis para todos.
Foi a alegria total, toda a gente bateu palmas e romperam os vivas ao proprietário. Até que o mesmo de antes voltou a gritar:
- Cale-se, mágico!
O feiticeiro ficou vermelho de raiva e berrou:
- Quem foi o engraçadinho, hã? Quem foi?
Todos os rostos se viraram para o fundo da sala e dezenas de pares de olhos apontaram na direcção de um lobo azul, que ria perdidamente.
O feiticeiro desceu do palco, aproximou-se do provocador e desfechou-lhe uma paulada com a sua vara de condão, um robusto cajado nodoso. O lobo respondeu com um soco e ambos se envolveram num aguerrido corpo a corpo. O resto dos frequentadores, entusiasmados, começaram também a lutar entre si, gerando-se uma enorme balbúrdia, que deixou o estabelecimento completamente destruído.
Veio a Guarda, constituída por trolls façanhudos, e levou toda a gente a pé para a esquadra, menos a sereia, que teve de ir ao colo do centauro coxo, por lhe terem partido o aquário.

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