segunda-feira, 13 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (25)


A carta escolhida pelo senhor Semedo nessa noite foi o Dois de Paus, que saudou o Jóquer e o dono da casa com um aceno de mão e anunciou:
- A história que vos trago hoje tem um enigma. Fica ao vosso cuidado solucioná-lo no fim.
E, sem mais delongas, começou a contar.

Um soldado aventureiro, conhecido pela sua ousadia, ouviu dizer que, algures num reino do outro lado do mar, havia um imenso tesouro, à guarda de um monstro. Já muitos tinham tentado resgatá-lo, mas nenhum voltara dessa empresa. Como se tinha como homem de grande valentia, decidiu tentar a sua sorte.
Embarcou num navio de mercadorias e, passadas várias semanas, atracou no tal país. Nas tabernas do porto, procurou informações sobre o monstro e o local onde o poderia encontrar, mas a maioria das pessoas evitava falar no assunto. Até que, durante um jogo de cartas, um marinheiro embriagado desatou a língua e lhe forneceu as informações pretendidas.
O monstro morava numa caverna que ficava algures a Norte, na Montanha Tenebrosa, a vinte léguas dali e devorava todo e qualquer ser vivo que encontrasse. Toda a gente evitava aquelas paragens, pelo que o aventureiro teria de se deslocar pelos seus próprios meios.
Depois de recolher as indicações sobre o local, o soldado comprou um cavalo, abasteceu-se de mantimentos e partiu em viagem.

Cavalgou durante vários dias, até que chegou ao sopé da Montanha Tenebrosa. Deixou o cavalo a pastar num prado, à beira de um riacho, equipou-se para a subida e meteu-se a caminho. Um estreito carreiro serpenteava entre fragas e ravinas, em direcção à morada da fera. Ao final da manhã, avistou a entrada da caverna, em frente à qual se amontoavam as ossadas de vários animais e alguns humanos. No entanto, tudo estava em silêncio. O homem aproximou-se e ouviu o resfolegar do monstro, que dormia. Chegou-se à entrada e gritou:
- Ei, tu, ó bicho feio, acorda. Chegou aquele que te vai exterminar.
Ouviu-se um ronco e depois o barulho de patas sobre o cascalho. A criatura assomou, olhou para o homem e, com uma risada, respondeu:
- Quem és tu, pulga humana, para me vires importunar?
O soldado desembainhou a espada e, apontando-a ao monstro, repetiu:
- Sou aquele que te vai exterminar.
A criatura riu com mais força e apontou para as ossadas:
- Como vês, a entrada da minha caverna está juncada com os ossos de outros como tu, que tentaram exterminar-me. O resultado está à vista. Mas, já que aqui estás e eu ainda não almocei, vamos a isso.
E avançou, de goela aberta e garras esticadas, em direcção ao homem. Este manejou a espada com toda a perícia e aparou o golpe do bicho.
A cada investida do monstro, o soldado respondia com igual furor. A cada estocada deste, o monstro esquivava-se sem que o soldado o atingisse. Passaram mais de duas horas, sem haver vencedor nem vencido.
- Isto é inaudito - resmungou o monstro. - É a primeira vez que aparece alguém à minha altura.
- És duro de roer - gargalhou o homem -, mas eu também e acabarei por vencer-te.
- Duvido muito, mas tenho uma proposta a fazer-te - sugeriu a criatura. - Lutar é muito fatigante e eu estou com fome. Em vez de nos degladiarmos até cair de cansaço, façamos um trato.
O soldado ficou surpreendido com a conversa do monstro e indagou:
- O que queres dizer com isso?
- Em vez de nos esgotarmos numa batalha sem fim à vista, proponho outra alternativa. Apresentar-te-ei um enigma e tu terás de o desvendar. Se errares, depões a espada e serás a minha refeição. Se acertares, eu mesmo me precipitarei destas falésias e terminarei aqui o meu já longo fadário.
O homem apoiou-se na espada e, como também estava cansado de lutar, respondeu:
- Está bem, concordo. Que enigma é esse?
E a criatura rosnou:
- Diz-me, ó pulga humana, qual é o animal que, de manhã cedo anda com quatro patas, ao meio do dia anda com duas e ao final da tarde anda com três.
Depois de reflectir um pouco, o homem aclarou a voz, fez uma pausa e... deu a resposta. O monstro rugiu de fúria:
- Ah, maldito, que acertaste!
Preparava-se para quebrar a sua promessa quando a espada do soldado o atingiu mortalmente. A criatura vacilou e despenhou-se no precipício atrás de si.
O homem entrou na caverna e foi à procura do tesouro. Encontrou uma pequena arca de cobre, dentro da qual estavam guardadas esmeraldas, topázios e diamantes. Pegou nela, desceu a montanha e montou no cavalo.
No retorno, dirigiu-se a um porto diferente daquele por onde tinha entrado. Vendeu a montada e embarcou para a sua terra, onde vive rico e feliz.
Do outro lado do mar, ninguém se aproxima da Montanha Tenebrosa, porque se ignora ainda que o monstro foi aniquilado.

O senhor Semedo estava intrigado. Afinal, qual tinha sido a resposta do soldado?
- Eu avisei, logo no início - respondeu a carta de jogar, antes de voltar ao baralho. - São vocês que vão ter de a descobrir.
O Jóquer e o dono da casa discutiram a solução demoradamente, mas acabaram por chegar a acordo.
- Pois é! - riu-se o senhor Semedo, olhando para o Jóquer. - A resposta está mesmo à nossa frente.

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