quarta-feira, 1 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (13)


- Sabes que dia é hoje? - perguntou o Jóquer, enquanto o senhor Semedo espalhava sobre a mesa as cartas de jogar.
- Quarta-feira - respondeu este.
- Não é o dia da semana, o dia do mês - retorquiu o Jóquer.
O senhor Semedo olhou para um calendário que tinha na parede e concluiu:
- Dia um de Abril!
- O meu dia preferido - riu-se o Jóquer. - O Dia das Mentiras... e das partidas.
- Ah, pois... - murmurou o dono da casa. - Não me surpreende. E sabes de onde vem tal tradição? Deves saber, com certeza. Esse é o tipo de coisas que tu sabes, de fio a pavio.
- Pois sei e vou-te explicar! Embora não se tenha a certeza, porque esta coisa das tradições é sempre muito nebulosa, há uma teoria que me agrada particularmente. Começa com uma alteração ao calendário, em França, há mais de quatrocentos anos. De acordo com o calendário juliano, então em vigor, o ano começava a 1 de abril e toda a gente desejava nesse dia «Feliz Ano Novo» e trocava presentes. Ora, o rei francês, como outros na Europa, decidiu adoptar o calendário gregoriano, mudando o início do ano para 1 de janeiro. Passou a ser nesse dia que os franceses celebravam o Ano Novo, tal como faziam na data antiga. No entanto, muitas pessoas não conseguiram acostumar-se ao novo calendário, sendo que algumas nem sequer sabiam que ele tinha sido mudado. Assim, continuaram a festejar o Ano Novo no dia 1 de abril.
Para os ridicularizar, alguns rapazes tiveram a ideia de lhes oferecer falsos presentes e de os convidar para festas que não existiam. A brincadeira teve sucesso e, a partir dessa altura, todos os anos, no primeiro de abril, novos e velhos passaram a pregar partidas e a dizer mentiras por divertimento.
Um costume francês era colocar, o mais discretamente possível, pequenos peixes de papel nas costas das outras pessoas, que às vezes andavam o dia todo com eles pendurados, fazendo os outros rir. Por isso, se chama, nesse país, ao Primeiro de Abril, «Poisson d'Avril». Na Itália terão adoptado também esse costume, porque lá se chama à efeméride «Pesce d'Aprile». Aliás, a tradição estendeu-se, a pouco e pouco, por todo o mundo, com nomes diferentes em cada país, mas com formas de celebração muito semelhantes.
O senhor Semedo agradeceu a explicação e virou a carta do dia. Era um Sete de Ouros sorridente.
- Sabem que dia é hoje? - perguntou.
- Sabemos - responderam os outros dois em uníssono. - É o Dia das Mentiras!
- Muito bem. Fiquem então sabendo que vai ser esse o meu tema - rematou a carta de jogar. E contou a seguinte história:

Havia um rapaz que se divertia o tempo todo a pregar petas aos outros. Era tão mentiroso, tão mentiroso, que quem o conhecia não acreditava nele, mesmo quando falava verdade. Chamava-se Abelardo Mendes e toda a gente o tratava por «Se-abres-a-boca-mentes» ou apenas o «Mentes».
Algumas das suas mentiras eram tão estapafúrdias, que ficavam logo à vista, como a que ele contou sobre a sua «aventura de pesca»:
- No sábado, quando fui à pesca, ali ao rio, apanhei um peixe tão grande, tão grande, que tive de contratar um camião para o levar. Quem sabe se não seria uma baleia...
Ou então, quando encontrou um piolho na sua própria cabeça:
- Ontem, apanhei um piolho na minha cabeça, tão inchado, tão inchado que, com a sua pele, fiz um odre para o vinho.
Ou quando lançou pela primeira vez um papagaio de papel:
- A semana passada, lancei um papagaio de papel. Veio uma rabanada de vento e levou-o pelos ares, e eu fui também, agarrado ao cordel. Subimos tão alto, tão alto, que lá de cima vocês todos pareciam formigas. O que me valeu foi que o vento amainou e eu vim a descer, agarrado ao papagaio. Se não, a esta hora, estaria na China ou sabe-se lá onde.
As pessoas riam-se, encolhiam os ombros e respondiam-lhe:
- Ó Mentes, lá estás tu a «regar»...
Mas, por vezes, sobretudo quando encontrava alguém que não o conhecesse bem (ou não o conhecesse de todo), inventava umas patranhas mais subtis, que dificilmente eram detectadas como tal.
Uma vez, vieram umas pessoas de fora, que andavam a conhecer aquela região. Sentaram-se na esplanada do café onde o «Mentes» estava a beber uma imperial e o rapaz meteu logo conversa.
- Então, os senhores são de onde? Ah, andam em passeio... E ficam por aqui três dias? E já foram pagar a taxa do uso de chapéu? Qual taxa!? Ai, não sabem... Aqui na terra, quem usa chapéu tem de tirar uma licença e pagar a respectiva taxa. Como antigamente, quando era obrigatória a licença de isqueiro, já ouviram falar, com certeza. Pois, eu também concordo que é um bocado absurdo, sobretudo nestes dias de sol forte, mas as coisas são como são. Onde é que se trata disso? Na Junta de Freguesia, ali em baixo.
E indicou aos turistas onde se deveriam dirigir. Quando estes se apresentaram na Junta e manifestaram a sua intenção, foi gargalhada geral:
- Quem foi que vos disse tal coisa? Ah, pela descrição, só pode ter sido o «Mentes». Não liguem, que o rapaz é mesmo assim.
Um dia, alguns conterrâneos, fartos de ser aldrabados pelo «Mentes», decidiram dar-lhe uma lição. Forjaram um «mapa do tesouro» e fizeram com que ele fosse ter às mãos do rapaz. No local onde era suposto que o dito tesouro estivesse guardado, enterraram uma caixa com um gato morto lá dentro.
Assim que encontrou o mapa, o «Mentes» exultou de alegria. Era agora que iria ficar rico e poderia abalar daquela terra «atrasada» onde nascera. Seguindo as indicações do papel, foi andando até ao local do «tesouro», sem se aperceber que estava a ser seguido pelos que tinham preparado a marosca. Quando o «Mentes» desenterrou a caixa e viu o que lá estava dentro, ficou muito desiludido, mas não desarmou.
Um mentiroso é sempre um mentiroso. Voltou para trás e, quando encontrou o grupo que estava à sua espera, começou a relatar:
- Nem imaginem o que me aconteceu. Recebi das mãos de um misterioso desconhecido um mapa, com indicações para ir a determinado local. Nesse sítio, estava enterrado um tesouro fabuloso. Mas um gato, que lá estava de guarda, mal me viu, agarrou nas riquezas, bufou-me «Vade retro!» e, num salto, desapareceu no meio das fragas.

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