quarta-feira, 15 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (27)


Os copos tiniam uns contra os outros, enquanto o senhor Semedo os arrumava de novo na cristaleira. Tinha decidido ocupar o seu dia a aspirar o pó dos livros e a devolver o brilho aos copos que há muito não eram usados. Quando terminou as tarefas, sentiu-se muito satisfeito consigo próprio. Há muito tempo que a sua casa não estava tão limpa.
Depois de jantar, preparou tudo para o ritual do costume. Colocou o espelho na cadeira em frente à sua, junto à mesa da sala, onde espalhou as cartas do baralho, com as faces viradas para baixo. Quando o Jóquer chegou, pegou numa e virou-a. Saiu-lhe o Sete de Espadas.
- Salve! - saudou a carta de jogar - Estais prontos para uma fábula?
- Claro que sim! - responderam entusiasmados os dois amigos.
E esta foi a história que o Sete de Espadas contou:

Na imensidão da savana, pastava uma manada de zebras que, como mandam as regras, eram todas pretas às riscas brancas ou vice-versa. Bem... todas, menos uma, que era castanha às bolinhas brancas. Quando nasceu, foi grande a agitação entre familiares e vizinhos: isto era coisa nunca vista. E ficaram para sempre de pé atrás em relação à zebrinha.
Já maiorzinha, a Bolinhas - assim se chamava ela - saía por vezes de junto da mãe para ir brincar com as da sua idade, mas era sempre posta de lado. Nenhuma das outras queria brincar com ela. E a zebrinha voltava, chorosa, para junto da sua progenitora, que a tentava consolar com palavras meigas:
- Deixa lá, filha, eles são uns tontos. O que interessa não é o aspecto exterior, mas o que cada um traz no seu coração. E tu, minha querida, tens um coração doce como um fruto maduro.
As zebras adultas, por seu lado, divertiam-se a troçar dela com dichotes maldosos:
- A tua mãe devia estar com soluços quando nasceste!
- Cá para mim, não és uma zebra, mas um asno selvagem às pintas.
O pior era quando algum predador atacava a manada. Como se destacava das restantes, escolhiam-na de imediato como presa. Mas a mãe estava sempre por perto e defendia-a com vigorosos coices nas ventas dos atrevidos.
Embora em condições muito difíceis, Bolinhas foi crescendo saudável e forte, tornando-se a mais veloz de toda a manada.
Um dia, a mãe, já de idade avançada, não resistiu ao cerco de uns leões que por ali andavam a rondar. Os carnívoros eram muitos e bem organizados e conseguiram isolá-las do resto do grupo. Bolinhas e a mãe tentaram repeli-los, escoiceando e zurrando, mas as circunstâncias não estavam a seu favor. Quando a mãe foi filada por um leão enorme, gritou-lhe:
- Foge, filha, foge.
Claro que ela estava decidida a defender a mãe, mas esta suplicou-lhe que se pusesse a salvo. Aproveitando a distracção dos predadores, que se tinham concentrado de volta da progenitora, correu dali, em direcção ao resto da manada.
Bolinhas chorou amargamente a morte da mãe. Agora que estava sozinha, sentia-se ainda menos identificada com as outras, que a tratavam com a maior indiferença. Assim, decidiu partir, em busca de um sítio onde fosse aceite tal como era. Sabia que uma zebra isolada corria imensos riscos, mas estava determinada.
Sem se despedir, foi-se afastando, até perder a manada completamente de vista. Errou durante dias, em direcção a sul. De vez em quando, alguns predadores tentavam caçá-la, mas sendo boa corredora escapava-se sempre.
Até que, chegando à beira de um rio largo e fundo, sem ponte nem vau, Bolinhas ficou indecisa. Não podia continuar o caminho, mas também não queria voltar para trás, onde só tinha más recordações.
Um abutre real, pousado numa árvore seca, meteu conversa:
- Onde vai a donzela, tão sozinha? Deve andar à procura da sua família, por certo. Mas enganou-se no caminho, que as zebras, nesta altura do ano, estão mais para Norte. Ou, se calhar, não é uma zebra. As zebras são pretas com riscas brancas ou vice-versa e esta é castanha às bolinhas...
A zebra ignorou a fala do bicharoco e continuou a procurar um sítio onde pudesse atravessar o rio. Percorreu a margem para um lado e depois para o outro, sem vislumbrar qualquer passagem.
O abutre, entretanto, desviou a sua atenção para algo que vinha a descer o rio, arrastado pela torrente. Era um animal, debatendo-se com a força das águas e a tentar chegar à margem.
- Socorro! - gritou ele.
A zebra Bolinhas olhou atentamente para o animal e confirmou que se tratava também de uma zebra. Esticou-se para ela, mas estava demasiado longe para lhe poder prestar auxílio. Então, sem pensar duas vezes, atirou-se à água e nadou em sua direcção. A corrente, no entanto, era demasiado forte e puxou os dois animais para o centro do rio. Agarrados um ao outro, cansados de lutar, deixaram-se ir na corrente. Felizmente, numa curva do rio, foram atirados para a outra margem, pondo-se rapidamente a seco. O abutre, que os havia seguido pelos ares, na esperança de ter uma refeição, foi-se embora desiludido.
Bolinhas olhou então para a sua companheira e ficou boquiaberta. Também ela era uma zebra diferente. Não às riscas, nem às bolinhas, mas aos quadrados brancos e pretos.
- Chamo-me Xadrez - disse a outra zebra, que afinal era um «outro». - Obrigado pela tua ajuda.
Bolinhas apresentou-se e contou-lhe a sua história. A de Xadrez era muito parecida. Por isso, decidiram continuar viagem juntos até um lugar mágico onde cada um é aceite tal e qual como é.

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