sábado, 18 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (30)

Ilustração do livro «A little bit of winter», de Paul Stewart e Chris Riddell
Desta vez, o Jóquer apareceu meio escondido atrás de um leque aberto.
- Hola! Olé! - saudou ele, com voz de falsete.
- Mas que palhaçada é essa? - questionou o senhor Semedo.
- Palhaçada? «Afición», se faz favor. - respondeu o amigo, com uma gargalhada.
- O quê, também és partidário daquele espectáculo degradante em que se tortura um touro até à morte? - indignou-se o dono da casa.
- Nada disso, coitadinho do bicho - desculpou-se o Jóquer. - Mas venho agora de uma fantástica exibição de flamenco e estou inspirado.
- Ainda bem, fico mais descansado - retorquiu o senhor Semedo. - Vamos às cartas?
- Claro! Vira lá uma, para sabermos que história iremos ouvir hoje.
O senhor Semedo assim fez e saiu-lhe o Cinco de Espadas.
- A nossa história de hoje é um hino à amizade. Sentai-vos e escutai!

Os ruídos matinais dos outros bichos da mata acordaram o ouriço-cacheiro da sua longa hibernação. A Primavera chegara. No entanto, continuava cheio de sono. Virou-se para o outro lado e voltou a fechar os olhos, tentando retornar ao sonho maravilhoso de onde saíra a contragosto.
Nisto, um ronco terrível estremeceu-lhe as entranhas. Deu-se então conta de que estava esfomeado. Pudera! Há vários meses que nada trincava...
Espreguiçando-se e bocejando, o ouriço saiu da toca e piscou os olhos à primeira luz da madrugada. Era ainda muito cedo. Se não fosse a fome, não hesitaria em voltar para o ninho.
Como se sabe, os ouriços-cacheiro preferem o fim da tarde e sobretudo o escuro da noite para as suas passeatas. O dia é para dormir! Mas o seu objectivo, agora, era alimentar-se e acalmar, o mais depressa possível, a fome que o assolava. Voltaria depois à segurança da toca e ao descanso do sono.
Com passo trôpego e olhar estremunhado, embrenhou-se na mata, em busca de insectos ou bagas que lhe conviessem. Mas os sinais do Inverno ainda marcavam aquele lugar. Teria que andar muito, para encontrar alguma coisa comestível.
Algum tempo depois, chegou a um pomar. As árvores de fruto estavam salpicadas de botões e algumas já em flor. Mas faltava ainda muito para que dali pudesse retirar proveito.
O ouriço dedicou-se então a vasculhar as ervas e debaixo de algumas pedras, a ver se achava insectos para se alimentar.
Ainda sonolento, não reparou numa cova atrás de si e caiu para dentro dela. Não era muito funda, mas o suficiente para que o bicho, depois de se esticar o máximo que podia, concluir que estava ali preso. Cansado, esfomeado e desesperado pôs-se a chorar.
- O que estás aí a fazer? - ouviu uma voz perguntar.
Olhou para cima e viu a cabeça de um coelho a espreitar. Animou-se um pouco e respondeu:
- Caí aqui para dentro e agora não consigo sair.
O coelho respondeu:
- Eu ajudava-te, mas tens tantos picos...
O ouriço aproveitou a deixa e disse:
- Não te preocupes com os meus espinhos. Eu encolho-os e não correrás risco de te magoar.
O coelho acenou em sinal de compreensão e saltou para dentro da cova, dizendo:
- Sobe para cima de mim.
O ouriço-cacheiro assim fez. Esticou o corpo e atingiu o topo do buraco. O coelho empurrou-o para cima e aquele saiu com facilidade. Depois, o láparo deu um salto e ficou a seu lado.
- Obrigado, obrigado - agradeceu o ouriço. - Sem a tua ajuda, acho que morreria aqui. Tenho tanta fome...
- Ora, não precisas de agradecer - disse o coelho. - Agora, anda comigo. Sei de uma horta, ali em baixo, onde poderás encher a barriga. E eu também.
Desceram os dois por um talude, atravessaram um silvado e desembocaram numa bela horta, à beira de um regato. Havia de tudo: couves, alface, cebolas, cenouras, ervilhas, favas, feijão de trepar, nabos, rabanetes e até salsa. Alguns destes vegetais ainda estavam a despontar, mas outros mostravam-se bem desenvolvidos. Para o coelho, era um regalo. E para o ouriço, havia imensos caracóis e, escavando num monte de estrume usado para adubar os canteiros, suculentas minhocas.
- Como te poderei agradecer tanta generosidade? - perguntou o ouriço-cacheiro ao seu amigo coelho.
- Não te preocupes. Se alguma vez estiver em dificuldades, tenho a certeza de que poderei contar contigo.
Passaram-se semanas, o tempo aqueceu e a natureza despontou em todo o seu esplendor. O ouriço-cacheiro e o coelho cruzavam-se de vez em quando e conversavam, a saber como ia cada um deles. O ouriço relembrava sempre o quanto estava agradecido ao seu salvador e dizia-se pronto para lhe acudir quando este precisasse.
- Até ver, não preciso de nada, obrigado - ria-se o coelho.
E cada um ia à sua vida.
Chegou o Verão, os dias cresceram e, ao final da tarde, era comum os dois amigos encontrarem-se na horta, sempre bem guarnecida e tratada.
Numa dessas ocasiões, ia ele a chegar, o ouriço-cacheiro ouviu guinchar entre as abóboras. Assustado, aproximou-se cautelosamente e deu de caras com uma cena que o petrificou. Uma enorme cobra tinha apanhado o seu amigo coelho e estava já a começar a engoli-lo. Este guinchava e esperneava desesperado, mas não tinha como escapar.
Depois do choque inicial, o ouriço não perdeu mais um segundo. Atirou-se à cobra e ferrou-lhe os dentes no lombo. Esta, para se defender, não teve outro remédio senão largar o coelho, que fugiu em alta velocidade. Furiosa, a bicha tentou morder o ouriço-cacheiro, mas os espinhos deste impediram-na de atingir o seu objectivo, acabando por virar costas e desaparecer no mato.
O ouriço-cacheiro foi à procura do amigo e encontrou-o, trémulo e ansioso, refugiado na sua lura. Assim que o coelho o viu, exclamou, aliviado:
- Ah! Estás aí. Pensei que a cobra te tivesse engolido, como me queria fazer a mim.
- As cobras nada podem contra os ouriços-cacheiro - riu-se este. - Fugiu a bem fugir. Acho que, por uns tempos, não voltará a aparecer na horta.
- Estás a ver? - constatou o coelho. - Eu bem te dizia que, quando estivesse em dificuldades, poderia contar contigo.
- É verdade! Os amigos são para as ocasiões - respondeu o ouriço.
E foram ambos, em animada conversa, à procura do jantar.

Sem comentários:

Enviar um comentário