terça-feira, 14 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (26)


Era já tarde quando o senhor Semedo acabou as tarefas que tinha destinado para aquele dia. Quando se deu conta das horas, estava quase na altura do seu encontro com o Jóquer, que devia estar mesmo a chegar. Improvisou um jantar ligeiro, instalou-se na mesa da sala, em frente ao espelho, e espalhou as cartas do baralho.
- Pareces um pouco desorientado - gracejou o Jóquer, quando apareceu.
- Pois. Hoje distraí-me com as horas. Levei muito mais tempo do que pensava, a fazer o que tinha a fazer. Acabei agora mesmo de engolir a última garfada do jantar - riu-se o dono da casa. - Mas já está tudo pronto. Posso virar a carta?
- Oh! Claro que sim - respondeu o Jóquer. - O que nos sairá hoje?
- Olha, é uma Quadra de Copas! - disse o senhor Semedo.
O Quatro de Copas cumprimentou os dois amigos e perguntou se tinham alguma questão a por-lhe, antes de contar a sua história. O dono da casa aproveitou a oportunidade:
- Todos vocês, os habitantes do baralho, sabem histórias, umas mais divertidas, outras mais assustadoras, umas sérias e outras tolas. Já sei que isso se deve ao facto de terem corrido o mundo e lidado com gente de todos os estatutos e idades. No entanto, tenho uma dúvida. De onde terão surgido as histórias?
A carta de jogar ficou um pouco pensativa e depois respondeu:
- Creio que não há uma resposta para essa questão, mas várias. Cada povo tem uma explicação para essa origem. Vou aproveitar e contar uma lenda sobre o assunto que veio da longínqua ilha de Timor.
Os dois amigos aquietaram-se e o Quatro de Copas começou a contar.

O primeiro homem da ilha do sândalo, sentindo-se solitário, roubou a pele a uma mulher crocodilo, que a despira e deixara escondida quando veio a terra. Em troca, pediu-lhe que esta lhe desse sete filhos e sete filhas. Ela não teve outro remédio senão aceitar. Muitos anos depois, cumprida a sua parte do contrato, exigiu a sua pele de volta. Antes de partir, chamou os filhos e disse-lhes:
- Tenho de ir, mas levo-vos comigo no meu coração. Se algum dia se virem em dificuldades, venham à beira do mar e chamem por mim. Se não vier eu, alguém da minha família virá para vos ajudar.
Depois, vestiu a pele e tornou à sua forma original, mergulhou no mar e nadou para junto dos seus.
Os filhos e filhas deste primeiro casal, multiplicaram-se e povoaram a ilha. Sempre que precisavam de ajuda, bastava chamarem os seus parentes crocodilos e estes ajudavam-nos.
Inicialmente, viviam dos frutos da floresta, mas os seus parentes crocodilos ensinaram-nos a caçar e a pescar. Depois, os seus parentes crocodilos ensinaram-nos a semear e a colher. No entanto, tinham de comer os alimentos crus. Os seus parentes crocodilos ensinaram-nos então a domesticar o fogo e eles aprenderam a cozinhar. À noite, sentavam-se à volta da fogueira, mas pouco tinham para dizer uns aos outros, porque não havia histórias para contar.
Um rapaz, que não tinha jeito para caçar, pescar ou semear, lembrou-se de arranjar uma solução para ele e para os seus. Foi junto ao mar e clamou por ajuda. Pouco depois, apareceu um crocodilo enorme, com uma grande boca, cheia de dentes afiados. O rapaz ficou apreensivo, mas o crocodilo tranquilizou-o:
- Não temas, sou o teu avô. Diz-me o que precisas e eu ajudar-te-ei.
O rapaz contou que as pessoas da sua aldeia se aborreciam, depois de terminadas as tarefas diárias, por não terem que dizer umas às outras. E ele, que não tinha jeito para caçar, pescar ou semear, queria tornar-se um contador de histórias, mas não conhecia nenhuma.
O avô crocodilo deu-lhe um bornal cheio de conchas marinhas e recomendou:
- Pega neste bornal e vai visitar todas as aldeias da ilha. Em cada uma deixarás uma concha e em cada uma apanharás uma história para colocar no seu lugar. Quando não tiveres mais conchas, terás o saco cheio e poderás então voltar para casa e ser um verdadeiro contador de histórias.
O rapaz despediu-se da família e partiu em viagem. Em cada aldeia por onde passava, falava com os mais velhos e ouvia o que tinham para dizer. Os velhos, como já tinham vivido muito, sabiam muitas coisas e adoravam falar delas. E o rapaz era um excelente ouvinte.
Sempre andando pela ilha fora, ouviu lendas fantásticas, contos misteriosos, fábulas divertidas. E, por cada história que ouvia, em cada uma das aldeias por onde passava, deixava uma concha, tal como lhe havia dito o avô crocodilo.
Sete anos passados, já não havia conchas no bornal, mas este continuava com o mesmo peso de sempre. O rapaz tinha a certeza de que o enchera com as histórias que havia escutado. Decidiu então voltar para casa e contar aos seus familiares e amigos tudo o que aprendera.
À noite, em torno da fogueira, todos se encantavam a ouvi-lo. O rapaz era agora um contador de histórias e tornara-se a pessoa mais estimada da sua aldeia.

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