sexta-feira, 3 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (15)


O senhor Semedo acordou tarde, já que o serão anterior se tinha estendido pela noite dentro. Fez um pequeno- almoço avantajado, poupando assim o almoço. Durante a tarde, ocupou-se em limpezas e arrumações e o tempo passou sem ele dar conta. À noite, depois de jantar, preparou as coisas na mesa da sala e esperou pelo Jóquer, que não tardou a chegar.
- Boa noite - saudou ele. - Vamos a isto?
O senhor Semedo escolheu uma carta e virou-a. Era um Três de Paus, que anunciou:
- Hoje, vamos ter uma fábula. A moral, no entanto, ficará ao cuidado de cada um.
E começou a contar.

Num fim de tarde de Outono, era já lusco-fusco, uma gineta encontrou, no meio de um caminho, um naco de toucinho. Tinha caído da carroça de um almocreve que por ali passara minutos antes. Quando se aproximava para o filar, veio a correr, do outro lado da estrada, um mangusto (ou sacarrabos), com a mesma intenção.
Ambos abocanharam a peça de carne em simultâneo, cada um por uma das extremidades. Sem a largarem, começaram a discutir entredentes:
- Larga! O toucinho é meu. Fui eu quem o viu primeiro.
- Não. Larga-o tu. Quem o viu primeiro fui eu.
E de argumento em argumento, teimavam, teimavam e nenhum estava disposto a ceder. O courato do toucinho era duro e, por muito que puxassem, este também não cedia.
Uma coruja ouviu o barulho da discussão e, do alto de um carvalho, pôs-se a observar a disputa, sem intervir.
Os dois adversários deram por ela e consideraram que, tendo as corujas fama de sábias e conciliadoras, seria ela a ideal para decidir quem tinha razão. Esta concordou, mas exigiu:
- Aceito, mas para isso temos de armar aqui um tribunal. A primeira coisa a fazer é colocar sobre aquele tronco o naco de toucinho e ficar cada um a uma distância considerável.
A gineta e o mangusto aproximaram-se do local indicado, mas não havia meio de largarem o toucinho. A coruja admoestou-os:
- Se querem que eu faça o julgamento, têm de cumprir as regras. Quando eu contar até três, largam ambos o toucinho ao mesmo tempo. Combinado?
Contrariados, os outros dois acenaram que sim e lá se fizeram as coisas como a coruja exigia.
Pediu depois a cada um dos oponentes que contasse a sua versão dos factos. Primeiro, falou a gineta:
- Vinha eu daquele lado quando vi no meio da estrada este bocado de toucinho. Quando ia para o agarrar, o mangusto veio do lado oposto, a correr, e abocanhou-o ao mesmo tempo que eu.
O sacarrabos contou exactamente a mesma história, só que invertendo os papéis. Na sua versão, quem tinha visto primeiro o toucinho tinha sido ele.
A coruja foi fazendo perguntas a uma e a outro, mas não havia maneira de se chegar a um consenso. Deu então a seguinte sentença:
- Como não chegam a acordo, vou propor o seguinte. Cada um vai afastar-se em direcções opostas do toucinho e, quando eu der sinal, correm ambos para ele. Quem chegar primeiro, ganha.
E foi dizendo para se afastarem, cada vez mais e mais. Contou então até três e a gineta e o mangusto correram em direção ao toucinho.
No mesmo instante, a coruja fez um voo picado, agarrou o naco com as garras e foi para um sítio alto e sossegado, saboreá-lo.

O senhor Semedo e o Jóquer agradeceram ao Três de Paus e este voltou para o baralho.
- Que moral tiraste tu desta história? - perguntou o primeiro.
- Nenhuma - disse o Jóquer, arreganhando os dentes numa risada. - Evito, tanto quanto possível, fazer juízos de valor. Mas gostei da coruja. É cá dos meus...

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