segunda-feira, 6 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (18)


Aquela era a décima noite em que o senhor Semedo e o Jóquer se preparavam para ouvir mais uma das histórias contadas pelas cartas de jogar. O baralho estava espalhado sobre a mesa, com as cartas de face para baixo, e o dono da casa virou uma, constatando que era o Oito de Paus.
- Hoje vamos saber como é que um pobre ferreiro conseguiu enganar o diabo - anunciou este. - Acomodem-se bem, que a história é um pouco longa.
Os dois ouvintes assim fizeram e a carta de jogar iniciou a narração.

Era uma vez um ferreiro muito pobre que tinha muitos filhos. Era tão azarado que tinha como alcunha «O Ferreiro da Maldição que, quando não lhe falta o ferro, falta-lhe o carvão».
Um dia, sem ter que dar de comer aos filhos, foi pedir esmola, mas nem um pedacinho de pão conseguiu. Já vinha de volta quando encontrou um sujeito muito bem vestido, a quem estendeu a mão. O indivíduo perguntou-lhe por que é que ele andava a mendigar se naquele lugar havia tanto trabalho para fazer. O ferreiro falou-lhe então da sua desgraça.
O tal sujeito disse-lhe que era capaz de quebrar a maldição, mas, em troca, o ferreiro teria lhe dar três gotas de sangue do dedo mindinho da mão esquerda. Depois, teria de obedecer a qualquer chamada que lhe fizesse, fosse onde fosse, estivesse onde estivesse.
Ao chegar a casa, o ferreiro contou à mulher o excelente negócio que havia feito.
A esposa viu logo que aquilo era coisa do diabo e soluçou:
- Ai homem, o que tu foste fazer! Vendeste a tua alma ao Demónio.
O ferreiro caiu em si, mas respondeu à mulher:
- Tenho fé de que conseguirei desfazer o contrato.
Daí por diante, nunca mais lhe faltou coisa alguma. Sempre lhe aparecia ferro, carvão e serviço. Ganhava muito dinheiro, tinha muita saúde e já se considerava um homem rico.
Sete anos depois, estava ele a trabalhar na forja, apareceu o diabo, que lhe disse:
- Venho aqui para te buscar.
O ferreiro respondeu:
- Está bem, eu vou contigo. Mas primeiro vamos comer alguma coisa, que está na hora do almoço e é um caminho longo, daqui até ao inferno.
O diabo, que também estava com fome, aceitou. Sentaram-se, cada qual numa ponta da mesa, e comeram. Quando acabaram, o ferreiro disse:
- Vá, vamos embora.
Mas o diabo não conseguia levantar-se da cadeira, que era de ferro e estava toda untada com pez. O ferreiro só o libertou com a promessa de que o deixaria em paz por mais sete anos.
Passado esse tempo, o diabo bateu à porta:
- Venho aqui para te buscar.
O ferreiro voltou a propor:
- Está bem, eu vou contigo. Mas primeiro vamos comer alguma coisa, que está na hora do almoço e é um caminho longo, daqui até ao inferno.
O diabo, lembrando-se do que tinha acontecido antes, disse logo que não, mas o ferreiro respondeu:
- Se não queres comer, é problema teu, mas eu estou cheio de fome. Deita-te ali naquela cama, a descansar, enquanto eu como.
O diabo, que estava cansado da viagem, aceitou. Mas quando o homem acabou de almoçar, não foi capaz de se levantar, porque a cama era de ferro e estava toda untada com pez. Mais uma vez, o ferreiro só o soltou com a mesma promessa: durante os sete anos seguintes, deixá-lo-ia em paz.
Passados mais sete anos, o diabo voltou:
- Venho aqui para te buscar.
O ferreiro voltou a propor:
- Está bem, eu vou contigo. Mas primeiro vamos comer alguma coisa, que está na hora do almoço e é um caminho longo, daqui até ao inferno.
Desta vez, o diabo respondeu:
- Desta vez, não me enganas tu. Hoje, ninguém come nem dorme, vamos já de caminho para o inferno, sem demorar mais um minuto.
- Está bem, se assim o queres. Mas antes vê ali dentro daquele saco, que tenho lá uma prenda para ti.
O diabo, que adora prendas, foi espreitar dentro do saco. O ferreiro empurrou-o lá para dentro e amarrou o atilho. Depois, pô-lo na bigorna e começou a malhar nele. O diabo gritava como o desalmado que era, mas o ferreiro não parava de malhar. Até que o diabo gritou:
- Desisto! Desisto! Deixa-me ir embora, que nunca mais aqui voltarei.
O homem soltou-o. No entanto,  antes de ir embora, o diabo rosnou:
- Deixa estar, que hás-de ser tu a ir lá ter!
Durante uns bons anos, o ferreiro da maldição malhou muito ferro, sem ninguém mais o perturbar. Porém, como toda a gente, envelheceu e morreu. Pegou num martelo, num par de tenazes e num espeto e foi até ao inferno
Quando lá chegou, bateu à porta e uma voz perguntou lá de dentro:
- Quem é?
- Sou o ferreiro da maldição.
Ao ouvir isto, o diabo que estava à porta  espreitou pelo buraco da fechadura.
Então, o ferreiro arrancou-lhe um olho com o espeto e o diabo fugiu, a ganir.
O ferreiro bateu de novo à porta do inferno.
- Quem é? – perguntou outro demónio.
- Sou o ferreiro da maldição, já disse!
Para verificar quem era, o demónio enfiou a orelha por uma fresta da porta. E o ferreiro arrancou-lha com a tenaz. O diabo fugiu também dali a ganir.
E o ferreiro bateu à porta do inferno pela terceira vez.
- Quem é? – gritou outro demónio.
- Arre! Já disse que sou o ferreiro da maldição.
O terceiro diabo passou uma pata por debaixo da porta, para o apalpar. Mas o ferreiro deu-lhe uma martelada com tal força que lha partiu e o diabo fugiu dali a ganir.
Passado um pouco, ouviu-se a voz de outro diabo, a uma distância segura da porta:
- O patrão manda dizer que é para te ires embora. Como bateste à porta três vezes e por três vezes não te deixámos entrar, o contrato está desfeito. Fora daqui! Não te queremos cá.
O ferreiro foi então bater à porta do Céu.
- Quem é? - perguntou São Pedro.
- É o ferreiro da maldição, que nem no inferno teve aceitação.
São Pedro abriu a porta do Céu e disse:
- Podes entrar, meu filho. É aqui o teu lugar, porque sempre foste um homem de fé e bom coração.

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