quarta-feira, 8 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (20)


- Por onde andaste hoje? - perguntou o senhor Semedo ao Jóquer, quando este espreitou do espelho.
- Desta vez, fui à Índia. Estive no palácio de um marajá, a apreciar uns doces maravilhosos - respondeu este, com um lamber de beiços. - Mas vejo que já tens o baralho pronto. Vamos, vira uma carta!
O dono da casa assim fez e saiu-lhe o Ás de Espadas, que anunciou:
- Trago-vos uma história de dragões, princesas e anões. Ah! E um lobo que, para variar, não é um Lobo Mau, antes pelo contrário.
E começou a contar:

Há muito, muito tempo, quando ainda havia fadas e ogres, vivia num reino longínquo um anão chamado Zelim. Era muito trabalhador e ocupava os seus dias a escavar pacientemente uma mina de ouro. Há anos que o fazia, embora sem grande resultado, dado que o objecto da sua busca era muito escasso. O local tinha sido abandonado há muito tempo, por ser pouco produtivo, mas Zelim tinha esperança de um dia achar um filão que recompensasse a sua persistência.
A mina situava-se na encosta de uma montanha, de onde se vislumbrava uma imensa planície coberta por densa floresta. Ao fim da tarde, Zelim gostava de sentar-se à entrada, a fumar, observando o sol a afundar-se na linha do horizonte. Era o momento em que os animais diurnos se refugiavam nas suas tocas e ninhos e os nocturnos saíam para as suas lides. E, dali de cima, Zelim via e ouvia tudo e todos e sentia-se o rei da montanha.

Numa dessas tardes, aconteceu algo muito estranho, que mudou para sempre a vida do nosso herói. Quando estava a acender o seu cachimbo, algo passou a voar por cima, com um bater de asas pesado. Pelo vulto, o anão pensou tratar-se de um enorme morcego, mas logo se desenganou: era um dragão. Zelim apagou o cachimbo, para não ser localizado: os dragões eram seres maléficos, que se aproderavam de tudo o que tivesse valor, coisas, animais ou pessoas. O bicho ia em direcção à planície e Zelim reparou que levava alguém preso nas suas garras. Olhando com atenção, verificou tratar-se de uma jovem rapariga, muito bem vestida, talvez uma princesa, que soltou um grito:
- Socorro! Ajudem-me...
Zelim estremeceu. Embora de aspecto rude e casmurro, tinha bom coração e estava sempre pronto a ajudar quem precisasse. Ficou, pois, a observar o voo da criatura, até esta aterrar numa clareira da floresta, provavelmente para passar a noite.
O anão entrou na mina e preparou-se para a viagem. Entre outras coisas, pegou no seu machado, tão duro e afiado que cortava qualquer material. Fora forjado há muitos anos pelos seus primos ferreiros e herdara-o do pai, que o herdara do avô e este do bisavô.
Desceu a encosta por um caminho íngreme e tortuoso, chegando ao sopé da montanha, era já noite cerrada. Mas os olhos de Zelim estavam habituados à escuridão da mina e viam tão bem como qualquer animal nocturno.
Orientando-se pelas estrelas, marchou em direcção ao acampamento do dragão, através da floresta. Não tinha ido muito longe quando ouviu um gemido. Muito lentamente, dirigiu-se à origem do ruído e deu com um lobo com uma pata presa numa armadilha. Zelim aproximou-se e sussurrou:
- Irmão lobo, vou ajudar-te, mas tens de te acalmar, enquanto te liberto.
O lobo olhou-o com ar triste e agachou-se, ganindo. O anão usou o seu machado para cortar as componentes da armadilha e soltou a pata do lobo. Depois enfaixou-a, enquanto o animal lhe lambia as mãos em agradecimento. Zelim disse-lhe:
- Pronto, estás livre. És livre! Vai à tua vida.
Mas o lobo deixou-se ficar, decidido a acompanhá-lo na sua jornada. O anão e o seu novo companheiro avançaram pela floresta, até que chegaram à beira de uma funda ravina, no fundo da qual bramia um ribeiro revoltoso. O lobo virou à esquerda e tomou a dianteira, disposto a contornar aquele obstáculo, mas Zelim pegou no seu machado e de um só golpe abateu uma velha árvore ressequida. A árvore rangeu e tombou até ao outro lado da ravina, criando uma ponte improvisada. Ambos passaram cautelosamente para a outra margem.
Não tardou que chegassem ao local onde o dragão se instalara. O bicho parecia adormecido, com uma das patas a prender a jovem, que soluçava baixinho.
Zelim e o lobo ficaram à espreita durante algum tempo, certificando-se de que o dragão estava mesmo ferrado no sono, bem como a sua presa, que sucumbira ao cansaço. Quando já não havia dúvidas, Zelim pediu ao lobo que ficasse atento e rastejou até junto da rapariga. Quando lá chegou, pôs-lhe a mão na boca e sussurrou:
- Não temas. Não grites. Estou aqui para te salvar.
A rapariga acenou afirmativamente e Zelim começou a puxá-la, para a soltar da pata do dragão, mas era impossível. Voltou a dirigir-se ao lobo e recomendou-lhe:
- Vou afrontar o dragão. Assim que ele soltar a rapariga, pega nela e leva-a para lugar seguro.
O lobo piscou os olhos, em sinal de compreensão, e Zelim afastou-se de novo, para junto da criatura alada. Aproximou-se do seu nariz e berrou, com o machado empunhado:
- Ei! Bicho feio e nojento, acorda, que te vou dar uma coça!
O dragão abriu os olhos e depois a bocarra, pronto a engolir Zelim. Mas este, que era surpreendentemente ágil, deu um salto e, num golpe de machado, cortou-lhe uma asa. Com um uivo horrível, a fera agitou a cauda, de modo a atingir o anão, que deu outro salto e lha cortou também.
Golpe a golpe, Zelim acabou por vencer o dragão, que sucumbiu, com a cabeça fendida.
Entretanto, o lobo tinha cumprido a sua parte e afastara-se com a jovem. Voltaram ambos à clareira, quando tudo acalmou.
A rapariga era mesmo uma princesa e contou que fora raptada pelo dragão, na intenção de exigir um resgate ao rei seu pai. Estava muito grata aos seus salvadores e agora esperava poder voltar para casa, mas não sabia como.
Zelim e o lobo dispuseram-se a acompanhá-la, o que a deixou muito feliz. O caminho era longo e os três iriam iniciar uma nova aventura.

O senhor Semedo e o Jóquer agradeceram ao Ás de Copas, felicitando-o pela escolha da história. Este fez uma vénia e voltou para o baralho. Os dois amigos trocaram algumas impressões sobre a viagem que o Jóquer fizera nesse dia e depois despediram-se e foram dormir. No dia seguinte, haveria, também para eles, nova aventura.

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