sexta-feira, 17 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (29)


Quem diria que o senhor Semedo era capaz de tanta minúcia... Com uma pequena tesoura, passou o dia a recortar formas intrincadas em várias folhas de papel de seda, que colou sucessivamente em rectângulos de cartolina colorida. Havia flores, animais, fiadas de casas, pessoas...
Quando o Jóquer apareceu, ficou boquiaberto com aquelas «obras de arte», como ele lhes chamou. O dono da casa ficou um pouco embaraçado com a efusividade do amigo e respondeu:
- Ora, nada de mais. Costumava fazer este tipo de coisa quando era miúdo e hoje apeteceu-me recordar esses tempos.
Espalhou as cartas sobre a mesa e, como de costume, virou uma ao acaso. Era o Rei de Paus.
- Estava já a achar que as figuras mais importantes dos naipes se andavam a esquivar - murmurou o senhor Semedo para o Jóquer.
O Rei de Paus fingiu que não ouviu e fez uma vénia elaborada aos dois.
- Hoje, iremos constatar que, por vezes, os nossos desejos se realizam da forma mais inesperada - anunciou, começando a narração:

Entre as muitas árvores de uma floresta, havia um carvalho insatisfeito. Os outros à sua volta eram mais antigos e maiores, bloqueando com as ramagens o espaço por cima da sua reduzida copa. A luz que lhe chegava era coada pela folhagem dos vizinhos, dificultando-lhe o labor diário.
Por isso, em vez de se alargar em ramos e galhos, o pequeno carvalho fazia o que podia para se desenvolver em altura. O tronco era esguio, pontuado por ramos curtos, de esparso folhedo. Ao contrário dele, os que o rodeavam tinham corpos grossos e sinuosos e exuberantes cabeleiras de folhas.
A cada ano que passava, empenhado na luta por um lugar ao sol, o pequeno carvalho ia-se esticando em direcção ao azul do céu. Ansiava o dia em que poderia finalmente vislumbrar para além dos seus horizontes limitados. Sob a alçada dos mais velhos, pouco mais conseguia ver que o pedaço de terra onde enraizara. Muitas vezes, sonhava que, em vez de árvore, era ave. Nesses devaneios, imaginava-se agitando os ramos-asas, em voo contrapicado. Depois, via-se rasando o verde telhado da floresta. E a seguir subia ainda mais alto, a rondar as nuvens, planando sobre planícies e montanhas.
«Se ao menos não estivesse aqui preso ao chão...», lamentava-se ele, quando voltava à realidade.
Um dia, o silêncio da floresta foi quebrado pelo ressoar de machados e serras. De tempos a tempos, o ranger da madeira, seguido de um fragor tumultuoso, dava sinal de mais uma árvore abatida. O pequeno carvalho desejou, mais que nunca, que as suas raízes fossem patas e os seus ramos asas, para fugir àquela investida, cada vez mais próxima.
Um velho carvalho a seu lado era agora o alvo das ferramentas cortantes e não tardou que a luz jorrasse em toda a sua imponência, quando este foi ao chão. Os homens ignoraram a esguia árvore e continuaram a alargar a clareira à sua volta, abatendo os vizinhos mais encorpados.
Alguns dias depois, ao final da tarde, já pouco restava da primitiva floresta. Apenas o pequeno carvalho ficara de pé, para além de alguns arbustos raquíticos, que tinham escapado ao esmagamento, quando as grandes árvores desabaram.
Embora triste pela devastação da floresta, que sentia agora como a sua família perdida, o pequeno carvalho suspirou de alívio. Escapara à sanha destruidora dos lenhadores e iria ter, finalmente, toda a luz que precisava para crescer.
No dia seguinte, no entanto, as suas esperanças foram por água abaixo. Sentiu o golpe de um machado na base do tronco, e depois outro e outro, até que já não conseguiu aguentar-se de pé. Ficou caído sobre a terra, soluçando em silêncio a sua desgraça. Depois de o alijarem dos ramos, foi puxado para cima de uma carroça e empilhado sobre os troncos de alguns dos seus irmãos.
Alguns dias depois, grandes serras haviam reduzido os troncos a tábuas, que foram também carregadas em carroças. Todavia, o pequeno carvalho continuou intocado e foi colocado novamente sobre a carga. Chiando e balouçando, os rudimentares veículos rodaram durante muitos quilómetros, até chegar à beira-mar. Aí, a madeira foi descarregada e empilhada num estaleiro. Durante várias semanas, as tábuas foram sendo agregadas umas às outras, à força de serra, plaina e martelo, dando corpo a um barco.
Quando o casco ficou terminado, o pequeno carvalho foi aparelhado e montado na vertical, sombreando o convés. Agora, já não era árvore, nem ave, era mastro.
Engalanado de velas, o barco foi finalmente lançado ao mar, com grande pompa. As tábuas da quilha resistiram ao impulso das águas e a embarcação rompeu as ondas com elegância. Nos braços do vento, o veleiro iniciava a sua primeira viagem. E o pequeno carvalho cumpria assim o sonho de uma vida.

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