sexta-feira, 10 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (22)

O senhor Semedo sentia-se mais animado. Afinal, de que se podia ele queixar? Estava em segurança, não lhe faltava nada em termos materiais e tinha amigos que o vinham visitar e conviviam com ele ao final do dia. A propósito, estava na hora de preparar tudo...
Assim que acabou de dispor as cartas sobre a mesa, o Jóquer sorriu no espelho:
- Vamos a isso?
O senhor Semedo virou uma carta. Era um Nove de Paus, que contou a seguinte história:

Havia um rei que tinha duas filhas e gostava muito de caçar. Um dia em que andava na montaria, embrenhou-se na floresta em perseguição de um cervo e perdeu-se do resto da comitiva. Vagueou entre o mato cerrado durante bastante tempo, até que sentiu odor a fumo. Seguindo o cheiro, foi dar à cabana de um carvoeiro.
Depois de dizer ao carvoeiro qual era a sua situação, o rei pediu-lhe que lhe indicasse o caminho para a cidade. O carvoeiro respondeu-lhe que, por muito bem que lho explicasse, dificilmente aquele daria com o caminho. Por outro lado, não o poderia acompanhar naquele momento. Se abandonasse o local, havia o risco do fogo da carvoaria se descontrolar e pôr a floresta em risco. Tinha uma filha, mas esta andava fora, a vender carvão. Tinham, no entanto, um porco muito esperto, que costumava fazer com ele o caminho para a cidade. Por isso, não se importava de lho alugar, desde que ele prometesse que o devolveria. Esperavam fazer com o bicho uns belos enchidos, no Inverno seguinte. O rei prometeu devolver o animal, pagou ao carvoeiro e seguiu caminho atrás do porco.

Ao longo do percurso, confrontaram-se com vários obstáculos, que o porco conseguiu  contornar sempre da melhor maneira. O rei ficou espantado com as capacidades do animal. Concluiu que este era mais inteligente que alguns dos seus ministros.
Umas horas depois, o rei conseguiu sair da floresta e reencontrar o caminho para o seu palácio. Tão satisfeito estava que decidiu organizar um banquete em honra do porco e apresentá-lo à corte.
As duas princesas, assim que viram o aprumo e inteligência do suíno, ficaram encantadas com ele. Por isso, quando chegou a altura de o devolver ao carvoeiro, disseram ao pai que o queriam como animal de estimação.
O rei chamou um dos seus cavaleiros, Valente de seu nome, por sinal, o mais destemido da corte. Entregou-lhe um punhado de moedas e pediu-lhe que fosse à floresta negociar a compra do porco com o dono.
Depois de muito deambular, o cavaleiro deu com a carvoaria no meio da floresta e chamou o carvoeiro. Em vez deste, veio a filha, que lhe respondeu:
- O meu pai foi à cidade vender carvão, só deve voltar lá para o fim da tarde. Se o senhor quiser entrar e matar a sede, terei todo o prazer em fazer-lhe companhia. Podemos ir conversando, para passar o tempo.
Valente aceitou o convite e sentou-se no alpendre da cabana. A moça veio, pouco depois, com uma taça de vinho e um sorriso enigmático no rosto. Como tinha artes de feiticeira, misturara na bebida uma poção mágica.
Ao primeiro gole, o cavaleiro sentiu as pernas presas, como se fossem feitas de pedra. Pensou ser do cansaço do caminho, que tinha sido bastante longo. Bebeu mais um pouco e aquele efeito espalhou-se pelo resto do corpo, ficando incapaz de se mover. A única coisa que conseguia controlar eram os olhos.
A rapariga chegou-se a ele e disse, com um riso de troça:
- Agora, estás sob o meu domínio, nobre cavaleiro. Promete que casas comigo e me levas para a corte, para que eu possa viver como uma fidalga, e eu desencantar-te-ei. Caso contrário, a minha poção continuará a sua acção e transformares-te-ás num belo porquinho para todo o sempre. Se estiveres de acordo, pisca os olhos duas vezes. Se não, tenho ali um chiqueiro à tua espera.
Valente, não vendo outra alternativa, assim fez. Ela foi então buscar um unguento e esfregou com ele o corpo do cavaleiro, que voltou a pouco e pouco à normalidade.
A rapariga trouxe de casa uma trouxa com os seus artefactos de feiticeira e ordenou:
- Vamos embora, está a fazer-se tarde e o caminho é longo. Alça-me para o teu cavalo e sigamos até à corte, organizar o nosso casamento. Um dia, tu e eu havemos de reinar sobre esta terra.
O cavaleiro sentia-se preso à sua promessa. Mas ao ouvir aquilo temeu que, ao cumpri-la, pusesse em perigo aqueles a quem estimava. Pelo que lhe tinha acontecido, sabia que a rapariga era capaz de tudo para conseguir os seus intentos. Por outro lado, tinha sido obrigado a comprometer-se contra sua vontade. Por isso, respondeu-lhe:
- Assim seja, mas antes mostra-me como funciona a carvoaria do teu pai. Sempre tive curiosidade em saber como se transforma a madeira clara em negro carvão.
A rapariga pegou-lhe na mão, foi com ele junto de um monte de terra de onde saía uma coluna de fumo e explicou:
- A lenha que o meu pai apanha na floresta é empilhada sobre uma camada de mato, que enche um canal aberto no chão. Por cima, põe-se mais mato e cobre-se tudo com terra. A seguir lança-se o fogo por uma das entradas, que é depois tapada, deixando a outra aberta, para entrar o ar e sair o fumo. Tem de arder muito lentamente, durante quatro dias. Ao fim desse tempo, o lume extingue-se e o carvão está pronto. É só ensacar e vender.
Valente mostrou-se muito impressionado e aproximou-se para espreitar a entrada, dizendo:
- Olha, parece que se está a apagar.
Esquecendo-se das suas ambições, a rapariga veio a correr, muito aflita, com um ramo aceso na mão:
- O meu pai encarregou-me de tomar conta do serviço. Se eu o deixar apagar, zanga-se comigo.
Quando ela se debruçou, o cavaleiro empurrou-a para o buraco, tapando-o depois com terra. Passado um pouco, ouviu-se um estrondo medonho e a pira foi pelos ares: a bruxa tinha rebentado.
O carvoeiro chegou entretanto e, vendo o que acontecera, ficou tão furioso que perdeu a sua forma humana. Cresceram-lhe garras e dentes e transformou-se no ogre que era, atacando o cavaleiro. Mas este pegou na sua espada e liquidou-o rapidamente.
Valente voltou para o palácio do rei e contou tudo o que lhe tinha acontecido. Soube então que, com a morte da feiticeira, o porco, que era um outro cavaleiro enfeitiçado por ela, se tinha desencantado e voltara à sua forma original.
O cavaleiro Valente casou com uma das princesa e o outro, que tinha sido desencantado, casou com a irmã.

O senhor Semedo bateu palmas, muito divertido, e rematou:
- E viveram felizes para sempre!
- Isso é outra história - respondeu a rir o Nove de Paus, que fez uma vénia e voltou para o baralho.

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