Contos curtos de Carlos Alberto Silva, resultado das colaborações na página do Facebook «Escrita de microficção», no blogue «77 palavras» e outros. [Todos os textos são redigidos em total desprezo pelo actual (des)acordo ortográfico]
quinta-feira, 2 de abril de 2020
A falta de paciência do jogo das paciências (14)
À hora combinada, estava o senhor Semedo em frente ao Jóquer, em vias de escolher mais uma carta do baralho. Perdera o receio de reencontrar a Rainha de Copas, porque suspeitava que ela fazia o impossível para o evitar. Curiosamente, saiu-lhe mais uma carta do naipe dela, mas desta vez o Ás.
Feitas as saudações e as apresentações, o Ás de Copas avisou que o conto que trazia era também um enigma. Tratava-se de uma história inventada sobre uma pessoa real, cuja identidade os ouvintes teriam de adivinhar no fim.
O Jóquer exultou:
- Excelente! Adoro enigmas e adivinhas. Vamos a isso.
O Ás de Copas aclarou a voz e iniciou a narração:
Num país longínquo do Norte, havia um casal muito pobre que tinha um filho chamado Hans. O pai era sapateiro e a mãe, lavadeira. Viviam numa casa minúscula, que era, ao mesmo tempo, habitação e oficina. Quando o rapaz chegou à idade de andar na escola, o pai matriculou-o, recomendando-lhe que estudasse muito, para arranjar uma profissão melhor que a sua.
No entanto, Hans detestava a escola e, sempre que podia, faltava às aulas para se ocupar das suas brincadeiras preferidas. O pai e a mãe ralhavam-lhe, mas eram brandos com ele.
O sapateiro, embora analfabeto, sabia imensos contos da tradição oral e, à noite, contava-os ao filho. Construiu para o rapaz um teatro de papel, onde Hans improvisava representações a partir das histórias que ouvia e das peças de teatro a que assistia.
Quando Hans fez 11 anos, ficou órfão de pai e teve de abandonar a escola. A mãe arranjou-lhe um emprego como tecelão, mas o rapaz não se deu bem com a profissão. Tal como não se deu com as de tabaqueiro ou alfaiate. Os seus interesses eram os livros, as histórias e o teatro.
Um dia, passou por ali uma companhia itinerante e o rapaz tomou uma decisão. Foi procurar o seu director, pediu-lhe trabalho e este contratou-o.
Hans foi então ter com a mãe e anunciou:
- Minha mãe, vou tentar a sorte na capital do reino. Aproveito a viagem da trupe itinerante que está agora na nossa cidade e, quando lá chegar, hei-de arranjar outra coisa melhor.
A mãe bem o tentou dissuadir, mas o rapaz estava decidido e, no dia em que a companhia partiu, ele foi também.
No entanto, a vida na grande cidade não era fácil e Hans passou um período de grandes dificuldades. Mas, como tinha uma bela voz, acabou por conseguir trabalho no Teatro Real como cantor, onde foi também actor e bailarino. Com o avançar da idade, a sua voz mudou e as sua possibilidades de trabalho foram-se reduzindo. Como, de vez em quando, escrevia peças e guiões para alguns dos espectáculos da companhia, começou a ganhar fama de poeta. O director do Teatro Real, reconhecendo o talento do rapaz, convenceu o rei a atribuir uma bolsa a Hans, que assim pôde fazer os estudos secundários e entrar, depois, na Universidade. Também ele o aconselhou a estudar, de forma a garantir um futuro confortável.
Com grande relutância, Hans assim fez, embora continuasse a detestar a escola e considerasse aqueles anos como os mais negros da sua vida. Mas tinha oportunidade para fazer algumas das coisas que mais prazer lhe davam, uma delas, escrever.
Entretanto, apoiado por alguns amigos, começou a publicar, com algum sucesso, obras dramáticas, apontamentos de viagens, diários e romances. Hans adorava viajar e, assim que conseguiu alguma estabilidade, percorreu uma boa parte do mundo, incluindo Portugal, registando as suas impressões em textos e desenhos.
As preferências dos seus admiradores iam, no entanto, para os contos que inventava para as crianças, que eram também apreciados pelos adultos. No início, baseou-se nas histórias populares da sua infância, mas depois começou a conceber contos da sua própria imaginação, com fadas, sereias, animais e até objectos falantes. Foram estes que o tornaram mundialmente famoso, celebrando-se hoje, dia do seu aniversário, uma efeméride importante.
- Já sei - disse o senhor Semedo - o rapaz chamava-se Hans Christian Andersen!
- Estava a ver que não chegavas lá - riu-se o Jóquer. - Há que tempos que percebi quem era, mas não quis estragar o prazer de seres tu a adivinhar.
O senhor Semedo, de forma algo comovida, agradeceu ao Jóquer. Tinha ali um amigo, um grande amigo!
Depois do Ás de Copas se retirar, o dono da casa foi buscar à estante um grosso volume e ficou até tarde a ler em voz alta para o amigo vários dos contos de Andersen. «Que serão magnífico», pensou. «Não teria havido melhor maneira de celebrar o Dia Internacional do Livro Infantil».
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