sábado, 11 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (23)


O senhor Semedo decidiu dedicar o dia ao desenho e à pintura. Foi buscar uns materiais que tinha guardado há anos numa caixa, instalou-se junto à janela e começou a esboçar as árvores e as casas da rua. Há muito que o não fazia e sentiu a mão que segurava o lápis um pouco perra. A pouco e pouco, os traços foram ficando mais fluídos e as formas mais bem definidas. Depois, deu umas pinceladas coloridas com aguarela e deixou a secar. Considerou o trabalho bastante satisfatório, tendo em conta a longa falta de prática. O próximo ficaria melhor...
Era já tarde, quando arrumou os materiais para preparar a mesa da sala para o serão. À hora marcada, o Jóquer apareceu sorridente no espalho, como sempre fazia.
- Que desenho tão giro! - exclamou ele. - Quem fez? Tu? Parabéns. Não te conhecia tais dotes. Aliás, há ainda muita coisa sobre ti que eu não sei. Temos de conversar mais... Mas não agora, pois está na hora de escolheres a carta da noite.
O senhor Semedo virou uma e saiu-lhe a Rainha de Espadas, que proclamou:
- Coragem! O que mais precisamos é de coragem. Mesmo quando o perigo nos ameaça, não podemos sucumbir ao medo. A história que aqui vos trago é sobre uma menina que derrotou o Medo. Sereis vós capazes disso?
O dono da casa e o Jóquer entreolharam-se, interrogativos, mas a carta de jogar começou a contar:

Um Medo foi instalar-se no sótão de uma casa, decidido a aterrorizar uma menina que vivia no andar de baixo. Todas as noites arranjava maneira de a assustar. Fazia ranger as tábuas do soalho, arrastava coisas de um lado para o outro, arranhava as telhas com as unhas, abria a janela gateira, para que o vento entrasse a uivar e, o pior de tudo, enchia a cabeça da criança com imagens aterradoras. E todas as noites esta acordava aos gritos, alvoroçando a família inteira. A mãe e o pai bem lhe explicavam que não existiam papões, nem monstros nem fantasmas. Diziam que era tudo imaginação, mas a menina não acreditava. E na noite seguinte os gritos e sobressaltos repetiam-se.

Uma noite, a avó foi deitá-la e tiveram uma conversa.
- Diz-me lá, minha querida, como é esse Medo que te mete medo? - perguntou a avó com meiguice.
E a menina explicou:
- É grande como um armário, escuro como uma sombra, tem olhos vermelhos e brilhantes como lanternas e uma boca enorme, cheia de dentes de tubarão. Faz ranger as tábuas do soalho, arrasta coisas de um lado para o outro, raspa as telhas com as unhas e rosna e uiva como um lobo.
- Ai o malvado voltou... - reagiu a avó.
- Conhece-lo, avó? - perguntou a menina.
- Se conheço! Quando eu tinha a tua idade, ele costumava fazer-me a mesma coisa. Mas eu arranjei maneira de o derrotar e ele teve de ir embora - explicou a avó.
- A sério? - duvidou a menina. - E como foi que conseguiste?
- Não foi fácil. No início, ele ganhava sempre e eu ficava a tremer e a chorar de susto. Por vezes, ficava tão amedrontada que até fazia xixi na cama. A minha mãe e o meu pai tentavam ajudar-me, como fazem os teus pais, dizendo que aquilo não existia. Mas eu sabia que eles estavam enganados. Até que descobri que tinha, dentro de mim, poderes para o derrotar.
- Poderes? Que poderes, avó? - questionou a neta.
A avó colocou o indicador direito na testa da menina e afirmou:
- Também tu tens esses poderes. Estão aqui dentro, procura-os. Quando os encontrares, vais ver que conseguirás derrotar o Medo, tal como eu o fiz.
Deu-lhe um beijinho e aconchegou-lhe a roupa.
- Deixa a luz acesa, avó, por favor... - pediu a menina.
Nessa noite, talvez porque a luz estivesse acesa ou o Medo estivesse cansado, a menina teve um sono tranquilo. Até adormecer, meditou em tudo o que a avó lhe tinha contado: também tinha sido pequena, como ela; também tinha tido medo do Medo, como ela; se o tinha conseguido derrotar, ela também seria capaz...
No dia seguinte, mal acordou, a menina correu para a avó, abraçou-a e anunciou:
- Avó, acho que já sei como derrotar o Medo. Descobri os meus poderes. Obrigada pela tua ajuda.
A avó deu-lhe um beijinho e murmurou:
- Ainda bem, minha querida. Depois, contas-me como foi.
Quando chegou a hora da menina ir para a cama, a avó foi de novo aconchegá-la. Antes de sair, encorajou-a:
- Se o Medo te voltar a importunar, não te esqueças de usar os teus poderes. Vais ver que ele acabará por ir embora para sempre.
Desta vez, a menina não pediu que a luz ficasse acesa. Estava decidida a resolver o assunto.
O sono começou a pesar-lhe nas pálpebras e estava quase a adormecer quando ouviu um ruído de tábuas a ranger por cima de si. Encolheu-se com o susto, mas fez um esforço para não gritar. Afastou os cobertores e sentou-se na cama. Depois, calçou os chinelos e subiu as escadas do sótão. Antes de abrir a porta, respirou fundo, para ganhar coragem. Empurrou-a devagarinho e espreitou. No meio de sótão estava o Medo, tal como ela o descrevera à avó: grande como um armário, escuro como uma sombra, com olhos vermelhos e brilhantes como lanternas e uma boca enorme, cheia de dentes de tubarão. A menina teve um arrepio e fechou os olhos. Colocou o dedo indicador na testa, voltou a respirar fundo e murmurou:
- Hoje, vou usar os meus poderes para te derrotar, malvado.
Quando abriu os olhos, viu algo completamente diferente. O Medo tinha perdido mais de metade do seu tamanho, era azul claro e vestia umas cuecas cor-de-rosa com folhinhos verdes. A menina riu-se e o Medo protestou:
- Que é isto? Eu sou o Medo e existo para te aterrorizar. Pára com essas parvoíces.
- Não - disse a menina. - Tu és o MEU medo e eu imagino-te como muito bem entender.
- Eu sou o Medo! - gritou o Medo, voltando a crescer mais um bocadinho.
- Não - voltou a dizer a menina. - És o meu Medo e eu é que mando!
O Medo encolheu mais um bocado e apareceram-lhe no cabelo uns puxinhos com laçarotes às bolinhas. A menina voltou a rir.
- Eu sou o Medo! - guinchou com voz de fantoche o Medo, crescendo de novo um pouco.
- Não - murmurou a menina. - És o meu medo.
O Medo voltou a encolher imenso e apareceu-lhe na boca uma chucha. A menina desatou às gargalhadas.
- Eu sou o Medo! - disse o Medo com uma voz aguda que mal se ouvia.
A menina voltou a colocar o dedo na testa, concentrou-se e ordenou:
- Vai-te daqui e nunca mais voltes!
A figura minúscula e ridícula do Medo encolheu mais e mais, até desaparecer num grão de pó. Então, a menina desceu as escadas, enfiou-se na cama e adormeceu com um sorriso nos lábios.

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