sábado, 4 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (16)


- Que carta irás tu desencantar hoje? - indagou o Jóquer, enquanto o senhor Semedo espalhava o baralho sobre a mesa.
- Venha a que vier, já sei que teremos mais uma bela história - respondeu ele com um sorriso, enquanto virava uma carta. - Olha, saiu uma sena de ouros!
O Seis de Ouros fez uma vénia desajeitada e sentenciou:
- Hoje, vamos saber quanto custa a ingratidão!
O Jóquer e o senhor Semedo puseram-se muito atentos, enquanto a carta de jogar narrava a sua história.

Um jovem fidalgo da província vivia com o pai num antigo castelo, alcandorado sobre uma colina rochosa. A mãe tinha falecido ao dá-lo à luz e o viúvo decidira nunca mais casar. Por isso, o moço tinha sido criado por uma ama de leite, que o adorava como se este fosse seu filho.
À volta da fortaleza, estendiam-se amplas e férteis planícies, onde os vassalos semeavam e criavam gado, garantindo o sustendo das suas famílias e do seu senhor. Longe iam os tempos de guerras e escaramuças, vigorando a paz por todo o território daquele reino. E este ambiente pacífico era propício a uma vida  próspera e tranquila. No entanto, o jovem sonhava com viagens e aventuras, desejoso de conhecer o mundo para lá daqueles horizontes.

Um dia, o pai adoeceu gravemente e chamou-o à cabeceira, para o instruir sobre os seus deveres, porque sentia que não iria sobreviver. O rapaz foi acenando afirmativamente a tudo o que o pai lhe dizia, esperançado de que este melhoraria. Mas tal não aconteceu e o rapaz ficou também órfão de pai. Durante algumas semanas, deixou que o desgosto do luto se fosse atenuando, até que, numa manhã de Primavera, decidiu partir.
A ama lembrou-lhe as palavras do pai, dizendo que ele era agora o senhor do feudo e tinha que zelar pelo bem estar de todos os que ali viviam, mas este não se deixou comover. Mandou aparelhar o cavalo, pegou numa saca com moedas da herança e foi correr mundo.
Durante alguns dias, vagueou ao acaso pelas terras circunvizinhas, pernoitando nas estalagens que encontrava pelo caminho. Por vezes, pedia hospedagem nos outros castelos da região e os respectivos senhores, ao saberem quem ele era, não lha negavam. Num desses serões, em conversa com um velho conde, ouviu falar do brilho e da elegância do ambiente da corte, na longínqua capital do reino. O que fez o jovem definir um propósito: iria visitar o rei e apresentar-lhe cumprimentos. Podia ser até que conseguisse arranjar maneira de ficar por lá.
O caminho era longo e com alguns perigos e, uma manhã, ao atravessar uma densa floresta, foi atacado por malfeitores, que o agrediram e lhe roubaram o dinheiro, o cavalo e a roupa. Convencidos de que este estava morto, abandonaram-no à sua sorte.
O jovem fidalgo teria sucumbido se não tivesse passado por ali uma rapariga, que o socorreu. Levou-o para a sua cabana e tratou dele até que este recuperasse. Durante a convalescença, os dois jovens foram-se aproximando, acabaram por se apaixonar e passaram a viver juntos.
Depressa o rapaz se cansou daquela vida simples e recuperou a sua intenção inicial. Quando se sentiu suficientemente forte, despediu-se da sua salvadora, que lhe suplicou que ficasse. Este, no entanto, revelou a sua ascendência e desdenhou dela. Magoada com a sua ingratidão, a rapariga amaldiçoou-o:
- Vai, vai! Um dia hás-de voltar, nem que seja nas asas de um corvo.
O jovem fidalgo riu-se, insultou-a rudemente e virou costas. Depois de muito andar, aportou a um castelo que ficava próximo, onde lhe deram o apoio digno da sua condição.
Algum tempo depois, o jovem fidalgo continuou a sua jornada, até que chegou ao seu destino. O rei recebeu-o muito bem e, agradado com o seu humor e inteligência, pô-lo ao seu serviço. A pouco e pouco, o jovem foi alargando as suas relações sociais, sendo aceite e estimado por todos. Não tardou que uma fidalga da sua idade se enamorasse dele e acabaram por combinar casamento.
Na noite da véspera da boda, o rapaz abriu a janela dos seus aposentos e inspirou o sereno. Estava satisfeito com a sua nova vida, que era, tal e qual, como sempre havia sonhado.
De repente, ouviu crocitar e um corvo entrou-lhe pelo quarto dentro, em atitude de ataque. Alvoroçado, o rapaz pegou no atiçador da lareira e desferrou-lhe um golpe mortal. A seguir, atirou o cadáver da ave pela janela. Nesse instante, sentiu que algo de estranho acontecia aos seus pés. Olhou para baixo e constatou com horror que estes se tinham transformado em patas de corvo. Depois, foram os seus braços que se converteram em asas e na sua boca cresceu um bico. O corpo mirrou e cobriu-se de negras penas. Quis gritar, mas da garganta saiu apenas um granar rouco...
Levantou voo, saiu pela janela e bateu as asas em direcção à longínqua floresta.

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