quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O grito da Gioconda


O Louvre acabara de fechar e os corredores e galerias, ainda há pouco vibrantes de risos e conversas, mergulhavam no silêncio.
Cerca de uma hora depois, num leve sussurro, uma voz perguntou:
- Já podemos?
- Ainda não. Espera mais um pouco - respondeu outra réstea de voz.
- E o segurança? - questionou alguém, em tom preocupado.
- Não de inquietes. Daqui a dez minutos, estará a ressonar, refastelado no cadeirão do diretor. Desde que descobriu onde este guarda a garrafa do uísque, não passa uma noite acordado.
Logo que este cenário se confirmou, as estátuas e os personagens das pinturas começaram a aglomerar-se no salão central. Nessa noite, ia haver concurso de dança.
Três músicos picassianos de feição cubista começaram a tocar um tango. Formaram-se pares, que competiam pelo galardão dos melhores dançarinos.
Num canto, os elementos do júri iam tomando apontamentos e trocavam impressões entre si.
Nova música, agora uma valsa, marcava o ritmo da segunda prova. Seguiu-se uma rumba, um chá-chá-chá e um samba. A competição estava renhida e não havia maneira de o júri se decidir.
Já passava das duas da manhã quando um fauno irrompeu pelo salão, esbaforido, a gritar:
- Alerta, o guarda acordou. A garrafa estava quase vazia e o sono foi curto. Pirem-se já para as vossas posições, rápido, rápido!
Numa correria, cada qual procurou o seu lugar e a sua pose habituais. No entanto, com a precipitação - ou porque não tiveram tempo de chegar onde deviam - alguns estacionaram no sítio errado. Foi o caso, por exemplo, da Gioconda, que entrou atabalhoadamente num quadro de Munch e ali ficou, com a boca escancarada num grito mudo de aflição.
Minutos depois, o segurança iniciou a ronda. Nessa noite, tudo lhe pareceu estranho e deslocado. No entanto, encolheu os ombros, convencido de que era o uísque que estava marado.
[imagem gerada na plataforma leonardo.ai]

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Micro-conto outonal

O António Equinócio entrou na tasca dos ferroviários, com cara de poucos amigos.
- Bem vindo sejas, ó Tono! Eu não vos disse que ele chegava hoje? Ora, aqui está ele - gracejou o taberneiro.
A gargalhada foi geral, mas o visado não achou piada.
- Continuem assim e logo Verão. Nem a prima Vera vos acode. Faço da vossa vida um Inverno. Ou não fosse eu o chefe da estação.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

A amêndoa fugitiva

 


- Socorro! Socorro! Ele quer-me comer! - gritava aterrorizada uma amêndoa de caramelo salgado, rebolando pelo chão de mosaico.

Atrás dela, vinha um rapazito gordo, de passada pachorrenta, mas segura:

- Ora esta! Ora esta! - balbuciava ele, com a boca cheia de doces -. Deixa estar, minha atrevida, que não me escapas!

Mas o terror da amêndoa fugitiva era maior que a gula do rapazote e esta acabou por se distanciar. Aproveitando a porta entreaberta, escapuliu-se para a rua.

O sol primaveril brilhava glorioso e a amêndoa teve um lampejo de esperança. Finalmente, estava livre. Poderia cumprir o seu maior sonho e ir correr mundo.

Aproximou-se da borda do passeio e dispôs-se a atravessar a rua. No entanto, um carro que passava naquele instante, zás!, atropelou-a.

Na soleira da porta, o rapaz olhava incrédulo para a amêndoa esborrachada.

- Ora esta! Ora esta! Ficou feita em papas. Não faz mal, ainda tenho um pacote quase cheio! - concluiu ele, fechando a porta atrás de si.

Quem se regalou foi um pardalito que por ali andava, voltando para o ninho com o papo cheio de doces migalhas.

- Páscoa Feliz! Páscoa Feliz! - cantava ele, todo contente.