segunda-feira, 20 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (32)


O senhor Semedo pousou a viola, desgostoso. Há anos que tentava, mas nunca conseguira aprender mais que dois ou três acordes. As pontas dos dedos doíam-lhe e estava farto daquilo. Guardou o instrumento cuidadosamente dentro da capa e foi arrumá-lo no quarto. Não queria que o Jóquer tomasse conhecimento do seu fracasso. A seguir, preparou as coisas para o serão: o espelho sobre a cadeira da frente e as cartas espalhadas na mesa.
- O que andaste a fazer hoje? - inquiriu o Jóquer quando chegou.
- Nada de especial - mentiu o dono da casa.
- Ai sim? E o quê, mais precisamente? - atacou de novo o Jóquer.
- Já disse, nada de especial - resmungou o senhor Semedo. - Olha, estive a ler e a ouvir música.
- Está bem. Já vi que não te apetece falar disso - respondeu o outro. - Vamos às cartas?
O senhor Semedo virou uma e saiu-lhe o Valete de Ouros que, depois de uma breve saudação, começou logo a contar a sua história.

Um pescador e a sua esposa viviam numa casinha em frente ao mar. Quando este estava de feição, o homem aparelhava o barquinho que dormitava no areal e varava as ondas, até localizar um cardume de sardinhas ou carapaus. Largava então a rede e vinha a remar até à praia, de onde ele a mulher a puxavam, a abarrotar de pescado. Esta ia depois de canastra à cabeça até à vila, apregoando o seu «peixinho fresco, acabado de sair do mar».
Não tinham nada de supérfluo, mas havia sempre o suficiente para os dois, que se consideravam felizes com este modo de vida. A única mágoa do casal era não terem um filho, sobretudo a mulher. Por isso, quando o marido andava na faina, a varina ia até à orla das águas e pedia ao mar que lhe desse um.
Numa noite de equinócio, o oceano começou a ficar muito agitado, o vento soprava rijo e ouviam-se ao longe estampidos de trovoada. Ao antever o que ali vinha, o pescador e a mulher tinham puxado o barquinho para debaixo do alpendre. Sabiam que as marés vivas levam tudo o que se esquece na praia. Pouco depois, a tempestade chegou com toda a sua potência. O pescador e a mulher abraçaram-se debaixo das mantas e ficaram a ouvir a zaragata do vento com as ondas até adormecerem.
Na manhã seguinte, muito cedo, saíram ambos para o quintal, verificar os estragos provocados pela tormenta. Em frente à casa, do lado da praia, havia imensos detritos transportados pela tempestade: algas, cordas, fragmentos de rede, pedaços de madeira... Felizmente, o barquinho deles, protegido pelo alpendre, nada sofrera.
Juntaram a madeira numa pilha, para o fogão, enrolaram cordas e redes num molho e transportaram as algas para adubar a horta. A mulher reparou então que, pousado na areia, encostado ao muro do quintal, estava um cesto. Espreitou para dentro dele e deu um grito. O pescador veio a correr e espreitou também. No cesto, estava um bebé, dormindo sossegadamente.
Ambos ficaram perturbados com a descoberta e sem saber o que fazer. O bebé abriu os olhos e sorriu para os dois. A varina pegou então nele ao colo e levou-o para dentro de casa. A criança estava bem tratada e, enquanto lhe dava banho e vestia, pediu ao marido que fosse comprar leite.
Quando este voltou, conversaram sobre o assunto. Quem teria deixado ali aquele menino? E com que intenção?
A hipótese que melhor os satisfez é que seria o enjeitado de uma mãe solteira, talvez tão pobre que não o pudesse criar ou tão rica que não quisesse assumir a desonra. Sabendo que eles não tinham filhos, havia deixado ali o bebé para eles criarem.
Durante uns dias, a varina foi sondando as clientes sobre alguma gravidez suspeita, mas ninguém sabia de nada. De modo que resolveram assumir a criança como se fosse deles.
O menino foi crescendo feliz, com os cuidados e o amor do casal. Quando já era suficientemente crescido, passou a acompanhar a mãe, na venda do peixe, e depois o pai, na pesca. Passaram vários anos e o pequeno tornou-se num formoso jovem, alto e entroncado, gentil e trabalhador.
Ao final de um dia de Verão, o moço andava a nadar em frente à casa da família, quando sentiu algo a puxar-lhe um pé. Assustado, apressou-se a sair da água, ficando de atalaia às ondas, a tentar ver se andava por lá algum animal perigoso. Nada viu, no entanto.
Uma semana depois, o incidente repetiu-se. O jovem conseguiu vislumbrar, desta vez, um vulto a cortar as águas, em direcção ao horizonte. Contou aos pais e eles recomendaram-lhe que não voltasse a ir nadar sozinho. Mas o mar estava tão calmo, nesses dias, com uma temperatura tão apetecível, que o moço rapidamente esqueceu as recomendações. Além do mais, adorava mergulhar, sendo um excelente nadador.
Passou mais uma semana, a pesca tinha sido muito produtiva nesse dia. Depois de ajudar o pai e a mãe a recolher o pescado, o jovem foi dar um último mergulho, antes de jantar. Com rápidas braçadas, afastou-se da praia, aproveitando o refluxo das ondas. Quando se preparava para voltar, foi puxado para o fundo com força. Debaixo de água, abriu os olhos e viu algo que o perturbou. Uma mulher de longos cabelos azuis e pele arroxeada, com membranas nas mãos e nos pés. O jovem nadou rapidamente para a superfície e tentou fugir, mas o ser marinho bloqueou-lhe a passagem e fez-lhe sinal para se acalmar.
- Sou a tua mãe - disse ela. - A mulher do pescador costumava vir à beira-mar chorar por uma criança. Decidi entregar-te a eles para que te criassem, porque na altura não era seguro fazê-lo eu. Mas agora, que já és um homem, vim pedir-te que venhas comigo, reinar sobre todos os habitantes das profundezas marinhas.
Perplexo, o moço lançou uma torrente de perguntas, a que a mulher respondeu pacientemente. Uma delas era como poderia ele viver nas profundezas do mar, se era um ser terrestre? Como respiraria? A mãe apenas lhe disse:
- Deixa-te afundar e experimenta.
A medo, mergulhou e abriu a boca e as narinas, confirmando que conseguia respirar também ali. Convenceu-se, finalmente, que a mulher falava verdade.
- Deixa-me despedir deles, mãe - pediu ele.
- Está bem, mas rápido, porque temos muito que viajar, antes que a noite caia.
O jovem dirigiu-se à casa em frente à praia e contou tudo aos pais adoptivos. A princípio incrédulos, aceitaram acompanhá-lo até à beira-mar, onde conheceram a criatura marinha. O moço abraçou-os e depois entrou nas águas, com um aceno de despedida. Com os olhos cheios de lágrimas, a mulher do pescador dirigiu-se à verdadeira mãe do rapaz, murmurando apenas:
- Obrigada!

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