domingo, 5 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (17)


Assim que o Seis de Ouros acabou de contar a sua história, o senhor Semedo e o Jóquer olharam um para o outro, com falso ar amedrontado, e largaram a rir.
- Esta história teve um final um bocado assustador. Tiveste medo? - perguntou o dono da casa.
- Naaaa... O Jóquer nunca tem medo - respondeu o outro. - E tu?
- Eu, já sabes, sou o senhor Sem Medo.
E voltaram a gargalhar até lhes doer a barriga.
A carta de jogar olhou para eles como se não estivessem bons da cabeça e aproveitou para voltar ao baralho.
***
No dia seguinte, à hora combinada, lá estavam os dois amigos à volta da mesa da sala, tentando adivinhar qual seria a carta sorteada.
- Acho que é hoje que te sai a Rainha de Copas - murmurou o Jóquer, em jeito de provocação.
- Nem me fales... - reagiu o dono da casa. - Vou virar esta e logo se verá.
Começou a virar, muito devagarinho, a carta que tinha debaixo da mão direita e parou a meio do movimento.
- É uma rainha, mas não sei qual. Ai! Queres ver que me azaraste? - protestou ele.
- Deixa-te disso - respondeu o Jóquer. - Vira lá a carta e, tal como disseste, logo se verá.

O senhor Semedo virou a carta e verificou com alívio que era uma rainha... de Ouros.
- Boa noite, vossa alteza! - saudou ele, à cautela, não fosse esta rainha ser tão implicativa como a de Copas.
Mas a Rainha de Ouros era uma personagem muito segura de si e com grande sentido de humor.
- Boa noite, cavalheiros - respondeu ela, com um sorriso. - Ouvi dizer que ontem ficaram amedrontados com a história que contou o meu vassalo.
- Naaaa... - responderam os dois em simultâneo, com uma gargalhada.
- De qualquer modo, hoje vamos ter algo mais ligeiro. É uma «versalhada» feita pelo menestrel da minha corte, numa noite em que tinha bebido para além da conta. Chama-se «O cão que tinha um gaiato» - explicou a Rainha, aclarando a voz, antes de começar a recitar:

Em tempos que já lá vão,
Num sítio muito pacato,
Era uma vez o cão
Que tinha um bravo gaiato.

Achou-o ele, um dia,
Vivendo num orfanato
E como ninguém o queria,
Ficou-lhe muito barato.

Para que tivesse um nome
Chamou-lhe apenas Torcato
E sempre que tinha fome
Servia-lhe ossos num prato.

Comprou-lhe uma casota
E coleira com ornato.
Para roer, deu-lhe a bota
Sem par, do avô Renato.

Sendo bicho de estimação,
Era bastante insensato.
Ia ladrar ao portão
Sempre que passava um gato.

Coçava-se o dia inteiro,
Com grande espalhafato.
Alçava o pernil traseiro
E fazia xixi num cacto.

Perseguia as galinhas,
Pregava sustos ao pato,
Sujava a roupa às vizinhas,
Era mesmo um grande chato!

No meio do jardim cavou
Buraco de grande formato
E foi ali que enterrou
Umas cuecas e um sapato.

O dono, mui descontente,
Da situação estava farto,
Decidiu que era urgente
Acabar aquele trato.

Pôs-se então a protestar:
- Ouve lá, ó meu ingrato,
Para a rua vais voltar
Neste momento exacto.

O pobre do animal
Tornou-se logo cordato
E rogou ao maioral
Que renovasse o contrato.

Que não tornava, jurou,
A fazer tal desacato.
E o dono concordou
Por achar o mais sensato.

Assim foi que aconteceu,
Acaba-se aqui o relato
Do cão que pertenceu
A um valente gaiato.

O senhor Semedo e o Jóquer bateram palmas, divertidíssimos, e a Rainha de Ouros, muito agradada, despediu-se com uma vénia.
- Mas, afinal, não era o cão que tinha o gaiato? - questionou o senhor Semedo.
- Não. Era o cão que o gaiato tinha - riu-se o Jóquer. - São as subtilezas da língua...

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