quinta-feira, 16 de abril de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (28)


O Jóquer apareceu a assobiar uma melodia barroca e acenou ao senhor Semedo, que espalhava as cartas sobre a mesa da sala.
- Vens muito bem disposto - disse-lhe este.
- Muito. Venho agora da Ópera, onde assisti a um espectáculo magnífico - respondeu o Jóquer.
- Mas não está tudo encerrado, por esse mundo fora? - espantou-se o dono da casa.
- Desse lado do espelho, sim. Aqui, o tempo é outro - gargalhou o amigo. - Vá, escolhe a carta de hoje, que estou curioso.
O senhor Semedo vagueou a mão ao acaso por sobre o baralho e tirou o Seis de Copas.
- Gostam de ler? - inquiriu a carta de jogar.
O senhor Semedo agitou a cabeça afirmativamente, mas o Jóquer moveu a palma da mão direita para um lado e para o outro, em sinal de «assim-assim».
O Seis de Copas registou as respostas dos amigos e rematou:
- Ler é bom, muito bom. Mas tudo o que é demais é moléstia, como diz o ditado. É disso mesmo que trata esta história.

O Xavier adorava ler. Enquanto os amigos brincavam na rua, ele ficava em casa, a viajar pelas florestas, desertos e montanhas das histórias. Por vezes, chamavam-no lá de fora:
- Anda daí, Xavier. Vem jogar à bola connosco.
Mas o rapaz respondia sempre:
- Já vou. É só terminar este capítulo.
Os amigos acabavam por desistir, porque ele, logo que terminava aquele capítulo, passava para o próximo e depois para o seguinte, e assim sucessivamente, até chegar à palavra «fim».
O livro de que o Xavier mais gostava era um volume muito grosso, com dezenas de histórias do mundo inteiro. Tinha a do Capuchinho Vermelho, a do Aladino, a do Patinho Feio e muitas, muitas outras. Já o lera duas vezes e andava a lê-lo pela terceira.
Estava uma bela tarde de Verão e o Xavier enfiado no quarto, a ler. A certa altura, deu-lhe a sede. Deixou o livro aberto em cima do tapete e foi à cozinha beber um copo de água. Quando voltou, o gato atravessou-se-lhe à frente, o rapaz tropeçou e caiu em cima do livro. No entanto, em vez de se ficar por ali, precipitou-se no abismo das páginas e foi engolido por elas. Era como se um peixe com uma boca enorme tivesse engolido uma mosca. A seguir, o livro fechou-se com um baque, tal e qual como a boca do peixe depois de engolir a mosca.
O Xavier, um pouco atordoado, ficou sem entender o que lhe tinha acontecido. Estava escuro e ele não percebia que sítio era aquele. Teria caído dentro do guarda-fatos, quando tropeçara? Apalpou à sua volta, mas ali não havia roupa pendurada. Não, não era o guarda-fatos...
Assim que se habituou ao escuro, viu brilhar um ténue raio de luz, como se este passasse pela frincha de uma porta. Aproximou-se e bateu com o nariz em qualquer coisa à sua frente. Tocou o obstáculo com as mãos e constatou que era mesmo uma porta. Empurrou-a, mas esta não cedeu. Puxou-a, então, e esta abriu-se, revelando um cenário inesperado. Uma floresta densa e sombria, que lhe era algo familiar. Quando saiu, viu que tinha estado dentro de uma casa, que lhe era também familiar.
- Uau! - exclamou o Xavier. - Esta é a casa da bruxa da história de Hansel e Gretel.
Depois do pasmo inicial, o rapaz ficou apreensivo. Se aquela era a casa da bruxa, a malvada devia andar por perto. A correr, foi-se esconder atrás de uns arbustos.
Mesmo a tempo! Logo a seguir, apareceu a velha na soleira da porta, a esfregar os olhos e a resmungar:
- Mas quem foi que deixou a porta aberta? Já não se pode dormir a sesta descansada!? Deve ter sido o idiota do gato. Se lhe ponho as mãos em cima, faço dele um pandeiro...
Ouviu-se o estrondo da porta a fechar e o Xavier ficou de novo sozinho, a pensar no que iria fazer a seguir. Antes de tudo, teria de se afastar dali. A casa tinha um ar apetitoso, coberta de bolos, chocolates e rebuçados, mas ele sabia que era apenas um truque da bruxa para atrair crianças desprevenidas, que a seguir devorava. Para além disso, a mãe estava sempre a dizer-lhe que os doces fazem mal aos dentes.
Seguiu por um carreiro e atravessou a floresta, até chegar a um vale verdejante. Do outro lado, no alto de um penhasco, havia um castelo cheio de torres, torrinhas e torreões, que lhe era também familiar. Era o castelo da Bela Adormecida. Dirigiu-se para lá e, depois de amarinhar através de um denso silvado, descobriu o portão do palácio, que estava entreaberto. Pé ante pé, percorreu corredores e salões, indo ter ao quarto da princesa. Que linda que era. O rapaz sentiu um impulso estranho e aproximou-se, indeciso.
- Será que lhe posso dar um beijo? E se ela se aborrece comigo? Sou apenas um rapaz vulgar e ela está à espera de um príncipe.
E ali ficou, vou não vou, balouçando na sua indecisão, cheio de vontade e de receio ao mesmo tempo. Quando finalmente se decidiu a beijar a princesa, ouviu uma voz conhecida a chamar por ele:
- Xavier! Xavier!
Era a voz da mãe.
- A mãe também deve ter caído dentro do livro - espantou-se ele.
- Xavier! Xavier! - tornou a mãe. - Ai, estás aí. O raio do rapaz adormeceu com a cara metida no calhamaço. Acorda, Xavier, acorda. Vai até lá fora, apanhar ar, que tanto ler até te dá volta à cabeça.
O rapaz abriu os olhos, estremunhado, e esboçou um sorriso comprometido. Fechou o livro, arrumou-o na estante e foi para a rua, jogar à bola com os amigos.

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