terça-feira, 31 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (12)


Desta vez, o senhor Semedo já tinha tudo pronto quando o Jóquer assomou ao espelho.
- Viva! - disse este. - Pelo teu ar ansioso, concluo que já não consegues passar sem as histórias das minhas amigas cartas de jogar.
- É bem verdade - respondeu o senhor Semedo. - Andei todo o dia a desejar que chegasse este momento.
- Muito bem, vamos então a isso! Vai lá buscar as cartas - incitou-o o Jóquer.
Como já era costume, as cartas foram dispostas sobre a mesa e o senhor Semedo virou uma. Era um Ás de Paus.
Depois de uma curta apresentação, a carta de jogar anunciou que iria contar uma história de fantasmas:

segunda-feira, 30 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (11)


No dia seguinte, o senhor Semedo ainda ria, quando se lembrava da história contada pelo cinco de copas. Tinha sido um serão espectacular, pensava ele, esperando que o desse dia fosse igual.
Depois de jantar, voltou a colocar o espelho no sítio do costume e chamou o jóquer, que apareceu imediatamente.
- Interrompi alguma coisa? - perguntou o homem.
O jóquer acenou a cabeça negativamente.
- Não senhor. Já estávamos todos à tua espera. Vamos à próxima história? Prepara as cartas e vamos a isso.
O senhor Semedo baralhou as cartas e colocou-as sobre a mesa como de costume. Num gesto decidido, pegou numa e virou-a ao contrário. Desta vez, saiu-lhe uma quadra de espadas.
A carta fez a continência e bradou, batendo os tacões das botas um no outro:
- Quatro de espadas ao seu serviço!

domingo, 29 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (10)


Quando o Duque de Ouros acabou de contar a sua história, o senhor Semedo bateu palmas entusiasticamente. A carta de jogar ficou com as faces coradas e despediu-se com uma vénia, antes de voltar para o baralho. O senhor Semedo arrumou as cartas e o jóquer pediu licença para se retirar. Ia ver se ainda conseguia degustar o tal chocolate quente, no café parisiense de onde tinha sido chamado. Combinaram o reencontro para o dia seguinte e o dono da casa foi-se deitar. Nessa noite, sonhou que era o rei Xariar das mil e uma noites e as cartas de jogar a sua corte. Curiosamente, a Xerazade do seu sonho parecia irmã gémea do jóquer.
No dia seguinte, à hora aprazada, o senhor Semedo apressou-se a colocar o espelho no sítio do costume. Ia para chamar o jóquer quando este se antecipou, aparecendo no reflexo à sua frente.
- Parece que as cartas estão a mudar a sua opinião acerca de ti - gargalhou ele. - Venho agora de lá e o Duque de Ouros disse maravilhas da sua experiência da noite passada. Hoje, já havia vários voluntários para vir contar a história do dia. Como não se entendiam, decidiu-se continuar a estratégia de ontem. Vais baralhar o maço de cartas e tirar uma ao acaso. No entanto, aqueles dois que nós sabemos continuam amuados. Vê lá se não te sai nenhum deles.

sábado, 28 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (9)


O senhor Semedo não conseguia aguentar até ao dia seguinte para ouvir o que as cartas tinham a dizer. Será que iriam querer dizer alguma coisa, pensava ele? No último contacto que tivera com elas, haviam-se recusado a colaborar.
Depois de um almoço ligeiro, pegou num livro e tentou ler, para ocupar o tempo, mas estava sempre a pensar no assunto e não se conseguia concentrar.
Assim que acabou de jantar, foi buscar o espelho do hall e colocou-o em frente a si, na mesa da sala. Chamou pelo jóquer e ele surgiu de imediato, no reflexo do espelho.
- Olá jóquer, por onde andaste?
- Aproveitei esta nova condição e fui fazer uma viagem. Já tinha saudades de viajar. Estava a preparar-me para saborear um chocolate quente num café de Paris, quando me chamaste.
- Lamento se te interrompi - desculpou-se o senhor Semedo, com um sorriso comprometido.
- O que me queres? - indagou o jóquer.
- Estava a pensar se não poderíamos ouvir as cartas esta noite. Estou a rebentar de curiosidade.
- Não foi isso que combinámos, mas vou perguntar-lhes. Sabes que as cartas são muito melindrosas... Já volto. - disse o jóquer e desapareceu.

sexta-feira, 27 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (8)


O senhor Semedo reclinou-se confortavelmete no sofá e o jóquer começou a contar a sua história:
- A minha origem perde-se na noite dos tempos. Já no Egipto dos faraós ganhava a vida e entreter a realeza. Durante séculos, fingi-me idiota e aproveitei todas as oportunidades para escarnecer de reis e papas. É claro que ninguém levava a mal. Era apenas um bobo da corte a dizer disparates inconsequentes. Mas o povo, na sua simplicidade, sabia a verdade e ria. Ria comigo e não de mim.
Para além da palavra, aprendi a dominar os instrumentos musicais e as artes circenses. Fui bufão, bardo e jogral, malabarista e palhaço.
Subi ao palco com mestre Will, em Inglaterra, com mestre Gil, em Portugal, e com muitos outros grandes dramaturgos, na Europa e nas Américas. Era o parvo a ganhar a cena, a dizer as verdades sem constrangimentos nem peias.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Quarentena no País dos Contos de Fadas


Fechados em casa há vários dias, os habitantes do País dos Contos de Fadas estavam a ficar aborrecidos e impacientes. A névoa esverdeada e pestilenta resultante do acidente da bruxa Canhestra continuava a empestar os ares e a provocar reacções mágicas desagradáveis a quem a inalasse.
A equipa de fadas, bruxas e feiticeiros que tinha sido incumbida de criar um feitiço de desencantamento que os livrasse dela, estava a demorar muito. O fenómeno, obra de um engano, era completamente desconhecido e a galinha que antes tinha sido a bruxa desastrada não conseguia explicar qual tinha sido o erro. Saltava obsessivamente e punha ovos de borracha, que saltitavam com ela.

A falta de paciência do jogo das paciências (7)


Após a sua higiene matinal, o homem foi até à cozinha, preparar o pequeno almoço. Fez café fresco, torradas e ovos mexidos. Dirigiu-se à sala com a comida num tabuleiro e, depois de arrumar as cartas, pôs a mesa para duas pessoas. No lugar em frente ao seu, colocou um espelho, que tirou de cima do aparador do hall de entrada. Sentou-se e fez retinir uma chávena, percutindo-a com uma colher, enquanto gritava:
- Jóquer, o pequeno-almoço está pronto!
Num instante, a imagem do jóquer apareceu no espelho.
- Olá, olá! - Disse o jóquer com uma vénia. - Que bom aspecto. Para quem é tanta comida?
- Para nós dois. Normalmente, não faço tanto, mas como somos dois dupliquei a dose - justificou o homem.
- Não era preciso - riu-se o jóquer. - Quando pões a mesa em frente ao espelho, fico automaticamente servido deste lado.

quarta-feira, 25 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (6)


Na manhã seguinte, o homem acordou muito bem disposto. Bocejou, espreguiçou-se e pousou, com lentidão, um pé de cada vez no tapete do quarto. Depois, correu a persiana e entreabriu a janela, deixando entrar o ar matinal. Por um momento, ficou-se a olhar lá para fora, embevecido pelo chilreio dos pássaros, nas árvores da rua vazia.
Dirigiu-se então à sala. As cartas de jogar continuavam em cima da mesa. O jóquer estava encostado à pilha, como um retrato na sua moldura, a boca num esgar de riso e os olhos trocistas a vigiar quem entrava.
- Bom dia! - disse o homem.
Mas não obteve resposta. Repetiu a saudação e apenas o silêncio o secundou. A confusão voltou a toldar-lhe o entendimento. Então, tudo o que se lembrava de ter acontecido na noite anterior era mentira?
Em cima da mesa da sala estava apenas um banal baralho de cartas, mudo e quedo como todos os baralhos de cartas normais. Que raio, tinha a sensação de ter sido tudo tão real... Era capaz de jurar que sim... Afinal, fora um delírio.

terça-feira, 24 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (5)


O homem estava cada vez mais irritado com a desfaçatez do jóquer.
- Mau, mau, Maria! Deixa-te de tentar ser engraçadinho - zangou-se o homem. - E vamos clarificar as coisas. Tanto quanto percebi, nenhum dos problemas que enumeraste é de agora. Os naipes vão ter de lidar com eles até ao fim dos tempos. Por isso, acaba com os rodeios e explica-me donde vem toda esta impaciência.
- Mas tu ainda não percebeste? - riu-se o jóquer.
- Não percebi o quê? Donde vem a impaciência das cartas de jogar? Como havia de perceber se tu ainda não me explicaste?
- Bem... - disse o jóquer com um suspiro. - Vou ter de te dizer. A impaciência vem... de ti.
- De mim? - espantou-se o homem - Ora essa...

A falta de paciência do jogo das paciências (4)


O homem suspirou de alívio. Pelo menos aquele não estava mal disposto como os anteriores. Decidiu averiguar a situação, perguntando:
- Ouve lá, ó jóquer, o que é que se passa com o resto das cartas? Estão todas zangadas e sem paciência, como o valete de paus e a rainha de copas?
- Parece que sim - respondeu o jóquer. - Embora aqueles dois sejam os piores. O valete de paus, porque na família dele resolvem tudo à paulada e a rainha de copas porque, desde que conheceu uma tal Alice, gosta de gritar a toda a gente «cortem-lhe a cabeça, cortem-lhe a cabeça...». Tiveste azar com estes, mas vais ouvir muitas inconveniências dos restantes se te decidires a continuar o jogo.
- Mas qual é a razão para tanto mau humor? - retornou o homem.

A falta de paciência do jogo das paciências (3)


O homem ficou largo tempo a olhar a rua deserta e mal iluminada, dado que um dos candeeiros de iluminação pública tinha a lâmpada fundida. «Devo ter também a lâmpada fundida», pensou ele. E depois riu-se nervosamente com a ideia. Respirou fundo e decidiu olhar o problema de frente. Se as cartas estavam vivas, e parecia que estavam, não podiam mandar nele daquela maneira. Afinal, eram apenas uns pedaços de cartolina dentro de uma caixa também de cartolina. Tinha sido ele que as tinha comprado na papelaria do bairro, há uns anos, para ocupar o tempo livre, o que era raro. Agora que tinha tempo para jogar, as cartas não queriam colaborar... Não podia ser!

A falta de paciência do jogo das paciências (2)


Mais calmo, o homem voltou a sentar-se em frente às cartas. Hesitante, decidiu continuar o jogo das paciências. Mas, pelo sim pelo não, ignorou a primeira pilha e virou a carta no topo da segunda.
- Quem foi que teve a ousadia de me incomodar? - gritou uma voz feminina em tom autoritário - Cortem-lhe a cabeça, já!
Desta vez, o homem ia tendo um colapso. Quem falara fora a rainha de copas, que ele tinha acabado de virar. Afinal, era verdade. As cartas estavam vivas. E falavam...

A falta de paciência do jogo das paciências (1)



Estava um homem confinado no seu domicílio, por razões que não interessam para agora. Sentindo-se aborrecido por não ter nada para fazer, pegou num baralho de cartas e pôs-se a organizar um jogo de paciências.
Começou por baralhar bem as cartas e colocou-as em várias pilhas sobre a mesa, com a face virada para baixo. Depois, preparou-se para virar a primeira carta de cada pilha, de forma a organizar sequências de cada naipe.
Assim que virou a primeira carta, foi surpreendido por uma voz irritada, que lhe disse:
- Deixa-me em paz, que hoje não estou para brincadeiras!

segunda-feira, 23 de março de 2020

O troll que não quis ficar em casa


No país dos contos de fadas, andava tudo em alvoroço. A bruxa Canhestra, desastrada por natureza, tinha-se enganado numa das suas poções mágicas e mandara a cabana pelos ares. Sobre todo o território, pairava uma névoa esverdeada e pestilenta, que provocava reacções esquisitas em quem a inalava. A começar pela própria bruxa Canhestra, que ficou transformada numa galinha saltitona e passou o resto dos seus dias a saltar à corda e a pôr ovos de borracha.
O centauro Serafim, carteiro de profissão, que ia a passar naquele momento, ganhou um apetite voraz por papel e comeu as cartas todas que tinha para distribuir. A seguir, invadiu a biblioteca e começou a devorar enciclopédias mágicas e romances de encantar. Tiveram de correr com ele à vassourada, senão não tinha restado qualquer livro nas estantes, o que seria uma tragédia.
A Ratinha Vaidosa, que vinha a chegar das compras à sua casa-cogumelo, desatou a cantar ópera em altos berros, com a sua vozinha desafinada. O que fez com que os vizinhos, ensurdecidos pela cantoria, a tivessem de amordaçar violentamente.

sexta-feira, 20 de março de 2020

O monstro minúsculo que queria ser rei


Versão ebook disponível no ISSUU

Num lugar muito longe daqui, havia um monstro minúsculo, tão pequeno, tão pequeno que ninguém conseguia vê-lo à vista desarmada. No entanto, tinha muito mau feitio e uma enorme ambição: tornar-se num gigante e ser rei absoluto. Como tinha nascido com uma coroa na cabeça, achava que tinha direito a dominar todo o planeta.
Um dia, foi consultar uma bruxa malvada muito poderosa e disse-lhe:
- Ouve lá, ó bruxa maléfica, estou decidido a tornar-me num gigante e a ser o rei absoluto deste planeta. Se me ajudares a consegui-lo, recompensar-te-ei e nomear-te-ei minha Primeira Conselheira.
A princípio, a bruxa achou que aquele monstro minúsculo não devia estar bom da cabeça. Ainda por cima, manifestava uma irritante falta de respeito. Chegou mesmo a pensar lançar-lhe um feitiço que o transformaria num sapo ou, como era tão pequeno, num grão de pó. Mas depois reconsiderou, pensando que aquilo até podia ser divertido e respondeu:
- Combinado! Se fizeres tudo o que eu disser, ajudo-te a conseguir o que pretendes.
Virou costas e foi para junto do seu caldeirão, criar um feitiço especial.

segunda-feira, 16 de março de 2020

O caçador azarado


Um homem abriu o frigorífico e deu-se conta de que não tinha nada para comer. Pegou então na espingarda e foi tentar caçar alguma coisa para o jantar.
Depois de muito farejar, deu com um rebanho de pizzas a pastar numa clareira. Aproximou-se cautelosamente, mas as pizzas deram por ele e fugiram espavoridas, sem que o homem tivesse sequer tempo de apontar a arma.
Mais à frente, vislumbrou uma gorda e indolente lasanha pendurada numa árvore. Mirou à cabeça da bicha e disparou, certo de que esta não escaparia. No entanto, a lasanha encolheu-se e a bala rasou-lhe as orelhas, sem lhe causar qualquer dano. Enquanto o homem recarregava a arma, a lasanha, embora lenta, escapuliu-se.
Já um pouco impaciente, o homem vasculhou o mato, em busca de caça, até que viu uns pastéis de bacalhau à entrada das tocas. Assim que se aproximou, os pastéis recolheram-se, num abrir e fechar de olhos.
Mais à frente, ouviu o grasnar longínquo de umas chamuças, que passaram a voar demasiado alto e o homem não arriscou desperdiçar mais uma bala.
Desanimado, o homem voltou para casa de mãos a abanar. E ao jantar, não teve outro remédio senão comer a espingarda, que era de massapão.

quarta-feira, 11 de março de 2020

As perguntas fugitivas

Um conhecido jornalista decidiu cozinhar umas perguntas para o jantar. Acendeu o lume, espalhou umas pedras de sal sobre as questões e colocou-as na grelha, muito bem alinhadas.
No entanto, as ditas-cujas eram incómodas e não paravam quietas. Passado um pouco, quando o calor das brasas se tornou insuportável, saltaram do grelhador e fugiram dali a gritar.
O conhecido jornalista teve então de se contentar com uma açorda de «fèdiveres» da semana anterior. Quem o mandou a ele querer alambazar-se com perguntas incómodas ao jantar?

O espirro traquinas


Andava um espirro a jogar à macaca sozinho numa rua da cidade, quando se viu rodeado por uma turba de moradores, que barafustava com ar ameaçador:
- O que andas aqui a fazer, malvado?
- Raspa-te, que não te queremos aqui.
- Vai lá para a tua terra.
- Pensas que te deixamos vir para a nossa rua lançar o pânico e a doença? Estás muito mal ensaiado...
O espirro bem tentou argumentar, mas em vão:
- Mas eu só quero jogar à macaca...
- À macaca? Não desconverses. Onde há um espirro, há uma tosse e onde há uma tosse há uma febre. Espirros, tosses e febres são exactamente o tipo de coisas que não queremos por cá.
Quando o espirro tentou contra-argumentar, os outros atiraram-se a ele, gritando:
- Anda cá, espirro maldito, que já te damos o arroz.
E tentaram caçá-lo com umas redes de apanhar borboletas que traziam nas mãos.
No entanto, o espirro era mais rápido e escapava-se sempre.
A coisa até era divertida, pensava o espirro. Primeiro, não o deixavam jogar à macaca, mas agora estavam todos a jogar à apanhada com ele. E ele estava a ganhar!
De repente, o espirro sentiu uma enorme comichão dentro do nariz, disse «Atchim!» e desapareceu no ar.
Os moradores deram vivas inflamados e foram a correr para casa lavar as mãos e a goela com uma solução alcoólica, durante um minuto e vinte segundos. Mas de nada lhes valeu...