Contos curtos de Carlos Alberto Silva, resultado das colaborações na página do Facebook «Escrita de microficção», no blogue «77 palavras» e outros. [Todos os textos são redigidos em total desprezo pelo actual (des)acordo ortográfico]
quinta-feira, 26 de março de 2020
Quarentena no País dos Contos de Fadas
Fechados em casa há vários dias, os habitantes do País dos Contos de Fadas estavam a ficar aborrecidos e impacientes. A névoa esverdeada e pestilenta resultante do acidente da bruxa Canhestra continuava a empestar os ares e a provocar reacções mágicas desagradáveis a quem a inalasse.
A equipa de fadas, bruxas e feiticeiros que tinha sido incumbida de criar um feitiço de desencantamento que os livrasse dela, estava a demorar muito. O fenómeno, obra de um engano, era completamente desconhecido e a galinha que antes tinha sido a bruxa desastrada não conseguia explicar qual tinha sido o erro. Saltava obsessivamente e punha ovos de borracha, que saltitavam com ela.
Como medida de emergência, tinham tentado criar um vento mágico que empurrasse a névoa dali para fora, mas a estratégia tinha falhado. Quando conseguiram afastar um pouco a imensa nuvem verde do território, ela voltou «automagicamente» ao local original.
As poucas máscaras protectoras existentes usavam-nas alguns dos habitantes para conduzir à «enfermaria dos encantados» aqueles que, por imprudência ou acidente, eram afectados pela névoa. Outros andavam a distribuir bens essenciais aos que os não conseguiam obter por artes mágicas. Outros ainda patrulhavam as ruas, gritando «Fiquem em casa! A névoa ainda não se dispersou! Cuidado, ainda não há cura! Fiquem em casa!».
Mas, para um povo que estava habituado a conviver, que gostava de passear em bando e de organizar festas ao ar livre, era muito difícil ficar em casa.
Alguns não aguentavam e arriscavam uma saída rápida, mas eram depois conduzidos à enfermaria, afectados pelos efeitos da névoa. Isso quando os conseguiam segurar. Por exemplo, uma lagarta falante que se atreveu vir mordiscar as couves do quintal foi transformada numa passarola e desapareceu no espaço antes que o pudessem evitar.
Assim, o desânimo era grande entre os «contofadenses». Até que o unicórnio Arco-íris teve uma ideia:
- E se fizéssemos uma banda e tocássemos para todos ouvirem? Sempre nos entretíamos e entretíamos os outros... - bradou ele através da sua trompa inter-comunicadora.
Logo surgiram vozes discordantes, a colocar a proposta em causa:
- E como iremos ver-nos?
- E como iremos fazer-nos ouvir em simultâneo?
- E como iremos ensaiar?
- E como iremos actuar?
Glinda, a Bruxa Boa do Sul, deu logo uma sugestão:
- Podemos usar as nossas bolas de cristal...
- E quem as não tiver? - resmungou Theodora, a Bruxa Má do Oeste.
- Usaremos os nossos poderes para fabricar mais - respondeu Locasta, a Bruxa Boa do Norte.
Toda a gente aplaudiu a ideia e as irmãs bruxas, incluindo a Bruxa Má do Leste, lançaram-se ao trabalho. Rapidamente, todos os que a não tinham receberam a sua bola de cristal.
Entretanto, a banda foi constituída. O unicórnio autor da ideia ficou com o saxofone, o gato das botas ao piano, a fada Sininho no vibrafone de vidro, o coelhinho branco na percussão, o gigante Adamastor no contrabaixo. A Bela Adormecida e a sereia Ariel eram as cantoras principais. O coro ficou a cargo dos Umpa-Lumpas. A banda combinou o repertório, realizou ensaios e marcou o primeiro concerto para daí a dois dias, ao final da tarde. Ficou também combinado que actuariam uma vez por semana.
Nesse dia ainda, houve uma proposta de Julien, rei dos lémures, para organizar uma aula de zumba, ao som do sucesso musical «I like to move it, move it». Toda a gente concordou entusiasticamente porque, assim, todos poderiam participar e fazer algum exercício físico.
Proposta a proposta, foi organizado um programa de actividades para toda a semana, que incluía as já referidas e outras como aulas de pintura culinária (as obras eram comestíveis), massagem telepática e feitiços de riso, por exemplo.
Dia após dia, o ânimo da população foi sendo recuperado e alguns repararam num fenómeno extraordinário. Quando todos estavam ligados uns aos outros a participar nas actividades, a névoa pestilenta enfraquecia progressivamente.
O entusiasmo foi geral. A continuar assim, com o empenho de todos, iriam conseguir resolver o problema.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário