Contos curtos de Carlos Alberto Silva, resultado das colaborações na página do Facebook «Escrita de microficção», no blogue «77 palavras» e outros. [Todos os textos são redigidos em total desprezo pelo actual (des)acordo ortográfico]
sábado, 28 de março de 2020
A falta de paciência do jogo das paciências (9)
O senhor Semedo não conseguia aguentar até ao dia seguinte para ouvir o que as cartas tinham a dizer. Será que iriam querer dizer alguma coisa, pensava ele? No último contacto que tivera com elas, haviam-se recusado a colaborar.
Depois de um almoço ligeiro, pegou num livro e tentou ler, para ocupar o tempo, mas estava sempre a pensar no assunto e não se conseguia concentrar.
Assim que acabou de jantar, foi buscar o espelho do hall e colocou-o em frente a si, na mesa da sala. Chamou pelo jóquer e ele surgiu de imediato, no reflexo do espelho.
- Olá jóquer, por onde andaste?
- Aproveitei esta nova condição e fui fazer uma viagem. Já tinha saudades de viajar. Estava a preparar-me para saborear um chocolate quente num café de Paris, quando me chamaste.
- Lamento se te interrompi - desculpou-se o senhor Semedo, com um sorriso comprometido.
- O que me queres? - indagou o jóquer.
- Estava a pensar se não poderíamos ouvir as cartas esta noite. Estou a rebentar de curiosidade.
- Não foi isso que combinámos, mas vou perguntar-lhes. Sabes que as cartas são muito melindrosas... Já volto. - disse o jóquer e desapareceu.
Uns minutos depois, estava volta ao espelho, a acenar:
- Tudo combinado! No início, não estavam pelos ajustes. Principalmente, os teus «amigos» Valete de Paus e Rainha de Copas. Mas depois consegui convencê-los. Concordaram que haveria um voluntário para a sessão desta noite. Como ninguém se chegou à frente, decidiu-se que serias tu a tirar uma carta à sorte, desde que não te calhe nenhum dos dois que referi. Anda, pega no baralho e vamos a isso.
O senhor Semedo pegou no baralho e espalhou as cartas na mesa, com a face para baixo. Deambulou um bom bocado com os dedos por cima delas, sem se decidir a escolher uma. Estava receoso de que lhe saísse um dos dois personagens embirrantes. Depois, começou a fazer contas de cabeça e percebou que as probabilidades eram bastante baixas. Pegou numa e virou-a. Era um duque de ouros. O senhor Semedo suspirou de alívio.
Após as apresentações, o jóquer pediu ao outro que dissesse o que tinha a dizer. E ele contou esta história:
- Certa vez, um camponês que não estava satisfeito com a vida que tinha, sonhou que, em certo local, estava escondido um tesouro. Sonhou isto uma vez, duas vezes, três vezes... À terceira, achou que era demasiada coincidência e decidiu ir em busca do tal tesouro. Despediu-se dos filhos e da mulher e, contra a vontade desta, partiu de bornal às costas. Depois de andar durante vários dias, chegou ao local dos seus sonhos, uma caverna escura escondida entre penedos. O camponês fabricou um archote, acendeu-o e entrou dentro da gruta. Era funda e pedregosa e ele estava quase a voltar para trás quando viu algo a brilhar um pouco mais à frente. Avançou e constatou que o que tinha visto nos seus sonhos era verdade. Empilhado num canto da caverna estava um tesouro magnífico: moedas, joias, tecidos finos...
O camponês começou logo a encher o bornal com tudo o que podia carregar. De súbito, ouviu um ruído de vozes que provinha da entrada da caverna. A seguir, ouviu passos na sua direcção. O homem entrou em pânico e ficou sem saber o que fazer. Deduziu logo que seriam os donos daquele tesouro, provavelmente, uma quadrilha de ladrões. Rapidamente, escondeu-se numa reentrância da caverna e apagou a tocha.
Os membros da quadrilha, pois era mesmo uma quadrilha, chegaram ao local com os seus archotes e depuseram junto às riquezas que ali estavam o produto dos seus mais recentes assaltos.
Depois prepararam-se para passar ali a noite. Comeram, beberam e gracejaram, até que, embriagados, adormeceram sobre as suas mantas, com os punhais e as pistolas à cabeceira.
A tremer de medo, o camponês esperou que os bandidos estivessem bem ferrados no sono e avançou às apalpadelas pela gruta, em direcção à saída. Mas enganou-se no caminho e enveredou por uma galeria que se estendia pela montanha dentro e se ramificava em várias outras galerias. Vagueou por lá a noite toda, sem encontrar uma saída. Cansado e desorientado, sentou-se e chorou silenciosamente, convencido que iria morrer ali e nunca mais veria a sua família. Recordou as palavras da mulher, que o tentara convencer a desistir daquela perigosa aventura.
A manhã já ia alta quando o camponês acordou e vislumbrou um raio de sol a entrar por uma abertura minúscula. Aproximou-se e começou a escavar com as mãos nuas, até conseguir abrir um buraco suficientemente largo para escapar dali. Arrastou-se, arranhando o corpo nas rochas, e conseguiu sair, mas teve que deixar o bornal para trás.
Cá fora, olhou à sua volta e viu, ao longe, os bandidos a sair da gruta. Iam carregados com os sacos e os baús do tesouro. O camponês concluiu que eles tinham dado pela falta do que ele tinha trazido no bornal.
Cansado, magoado e desiludido, o homem pôs-se a caminho de casa.
Quando lá chegou, foi recebido com lágrimas de alegria pela mulher e pelos filhos, que já se tinham convencido de que ele nunca mais voltaria. O camponês percebeu então que o seu maior tesouro estava ali e nunca tinha dado por isso.
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