Contos curtos de Carlos Alberto Silva, resultado das colaborações na página do Facebook «Escrita de microficção», no blogue «77 palavras» e outros. [Todos os textos são redigidos em total desprezo pelo actual (des)acordo ortográfico]
quinta-feira, 26 de março de 2020
A falta de paciência do jogo das paciências (7)
Após a sua higiene matinal, o homem foi até à cozinha, preparar o pequeno almoço. Fez café fresco, torradas e ovos mexidos. Dirigiu-se à sala com a comida num tabuleiro e, depois de arrumar as cartas, pôs a mesa para duas pessoas. No lugar em frente ao seu, colocou um espelho, que tirou de cima do aparador do hall de entrada. Sentou-se e fez retinir uma chávena, percutindo-a com uma colher, enquanto gritava:
- Jóquer, o pequeno-almoço está pronto!
Num instante, a imagem do jóquer apareceu no espelho.
- Olá, olá! - Disse o jóquer com uma vénia. - Que bom aspecto. Para quem é tanta comida?
- Para nós dois. Normalmente, não faço tanto, mas como somos dois dupliquei a dose - justificou o homem.
- Não era preciso - riu-se o jóquer. - Quando pões a mesa em frente ao espelho, fico automaticamente servido deste lado.
E era verdade. Enquanto o homem se ia servindo da comida, à sua frente, o jóquer fazia o mesmo no reflexo do espelho.
- Não faz mal. Tomamos um pequeno-almoço reforçado e assim, ao almoço, precisaremos apenas de uma refeição ligeira.
Atacaram ambos a comida, de ambos os lados do espelho, até não sobrar uma migalha. Durante a refeição, não disseram uma palavra, mas assim que terminaram, o jóquer limpou os beiços e sugeriu:
- Bem... agora, talvez devessemos começar por nos apresentar.
- Concordo! - anuiu o homem. - Começas tu ou começo eu?
- Começa tu - disse o jóquer.
- Pois bem, chamo-me António. António Semedo, mas toda a gente me chama «senhor Semedo». Estou aposentado. Fui bancário, mas tive muitas outras profissões ao longo da vida. Balconista, tipógrafo, contínuo, sei lá... uma infinidade de empregos, que nunca me trouxeram a segurança que necessitava. Até que entrei no banco e por lá fiquei até começarem a aposentar antecipadamente muitos dos meus colegas de trabalho. Fizeram-me uma proposta e eu aceitei. Aproveitei para viajar e conhecer o mundo, até que a minha companheira adoeceu e se finou em poucos meses. E aqui fiquei, sozinho neste apartamento, rodeado pelas memórias das nossas vivências e das nossas viagens.
- Muito prazer, senhor Semedo. Vou querer saber pormenores dessas tuas viagens. Também eu sou um grande viajante e, provavelmente, estivemos algures nos mesmos sítios.
- Sim, mas antes vais ter de te apresentar. Aposto que o teu nome verdadeiro não é «jóquer», pois não?
- Claro que não. Fui tendo vários nomes, ao longo da vida. O que me deram quando nasci desvaneceu-se no tempo. No entanto, podes chamar-me João, que é o que eu gosto mais.
- Muito prazer, caro João, mas prefiro Jóquer - cumprimentou o homem, aliás o senhor Semedo. - E o que tens tu feito ao longo da vida?
- Isso é uma história muito comprida. Vamos arrumar a louça, que a seguir te contarei.
Levantaram-se e levaram os pratos e as chávenas para a cozinha, cada um do seu lado do espelho.
Depois, o senhor Semedo mudou-o para um cadeirão da sala e sentou-se no sofá em frente, pronto para ouvir a história do jóquer.
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