quarta-feira, 25 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (6)


Na manhã seguinte, o homem acordou muito bem disposto. Bocejou, espreguiçou-se e pousou, com lentidão, um pé de cada vez no tapete do quarto. Depois, correu a persiana e entreabriu a janela, deixando entrar o ar matinal. Por um momento, ficou-se a olhar lá para fora, embevecido pelo chilreio dos pássaros, nas árvores da rua vazia.
Dirigiu-se então à sala. As cartas de jogar continuavam em cima da mesa. O jóquer estava encostado à pilha, como um retrato na sua moldura, a boca num esgar de riso e os olhos trocistas a vigiar quem entrava.
- Bom dia! - disse o homem.
Mas não obteve resposta. Repetiu a saudação e apenas o silêncio o secundou. A confusão voltou a toldar-lhe o entendimento. Então, tudo o que se lembrava de ter acontecido na noite anterior era mentira?
Em cima da mesa da sala estava apenas um banal baralho de cartas, mudo e quedo como todos os baralhos de cartas normais. Que raio, tinha a sensação de ter sido tudo tão real... Era capaz de jurar que sim... Afinal, fora um delírio.

Encolheu os ombros, desiludido mas resignado. Vagarosamente, dirigiu-se à casa de banho, para fazer a sua higiene. Quando olhou para o espelho, apanhou um susto. No lugar da sua imagem reflectida, estava a cara do jóquer.
- Ai! - gritou. - O que estás aí a fazer?
O jóquer riu-se, divertido com o susto dele. Acenou-lhe e respondeu:
- Decidi passar para este lado. Assim, quando quiseres falar comigo, basta chegares junto de qualquer um dos espelhos da casa e chamar por mim. Já verifiquei que tens vários. A cartolina da carta de jogar era muito acanhada. E estava sempre parado, sem poder cirandar por aí. Assim é melhor, para ti e para mim.
O homem suspirou de alívio e enxotou o jóquer com um gesto de falso enfado.
- Como queiras. Mas agora chega-te para lá, que preciso de fazer a barba.
O jóquer fez-lhe a vontade e o homem voltou a ver a sua imagem reflectida no espelho. Curiosamente, vislumbrava na sua própria cara o mesmo trejeito trocista da figura da carta de jogar.
- Jóquer! - chamou ele.
O jóquer apareceu a espreitar atrás do seu reflexo no espelho.
- Precisas de alguma coisa? - disse ele.
- Não, não - respondeu o homem. - É só para te dizer que, depois de me lavar e vestir, podes vir tomar o pequeno almoço comigo.
- Obrigado pelo convite - agradeceu o jóquer. - E até já.

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