domingo, 29 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (10)


Quando o Duque de Ouros acabou de contar a sua história, o senhor Semedo bateu palmas entusiasticamente. A carta de jogar ficou com as faces coradas e despediu-se com uma vénia, antes de voltar para o baralho. O senhor Semedo arrumou as cartas e o jóquer pediu licença para se retirar. Ia ver se ainda conseguia degustar o tal chocolate quente, no café parisiense de onde tinha sido chamado. Combinaram o reencontro para o dia seguinte e o dono da casa foi-se deitar. Nessa noite, sonhou que era o rei Xariar das mil e uma noites e as cartas de jogar a sua corte. Curiosamente, a Xerazade do seu sonho parecia irmã gémea do jóquer.
No dia seguinte, à hora aprazada, o senhor Semedo apressou-se a colocar o espelho no sítio do costume. Ia para chamar o jóquer quando este se antecipou, aparecendo no reflexo à sua frente.
- Parece que as cartas estão a mudar a sua opinião acerca de ti - gargalhou ele. - Venho agora de lá e o Duque de Ouros disse maravilhas da sua experiência da noite passada. Hoje, já havia vários voluntários para vir contar a história do dia. Como não se entendiam, decidiu-se continuar a estratégia de ontem. Vais baralhar o maço de cartas e tirar uma ao acaso. No entanto, aqueles dois que nós sabemos continuam amuados. Vê lá se não te sai nenhum deles.
O senhor Semedo assim fez. Baralhou as cartas e espalhou-as, de face para baixo, em cima da mesa. Percorreu-as com os dedos e pegou numa. Quando a começou a virar, viu um coração vermelho e teve um baque. Seria a Rainha de Copas? Afinal, não, era uma quina sorridente, que lhes contou a seguinte história:
- Ia uma tropa de burros, mulas e outras bestas quadradas por um caminho fora quando chegaram a uma ponte, guardada por dois mastins, que lhes disseram «Alto! Por aqui, ninguém pode passar.»
As cavalgaduras começaram logo a protestar, dizendo «Essa agora, não podemos passar... Quem são vocês para nos impedir?»
Os canídeos ripostaram, explicando que a ponte estava em mau estado e corria o risco de ruir. Estava proibida a passagem, por ordens do rei.
Não estando dispostos a acatar a proibição, os quadrúpedes começaram a argumentar «Esta ponte é o único caminho para atravessar o rio. Queremos passar e não são vocês que nos vão impedir».
Os canídeos arreganharam os dentes, prontos a atirar-se às alimárias e voltaram a avisar «Já dissemos que ninguém pode passar por aqui, ponto final. Voltem para casa!»
Os burros, as mulas e restantes bestas quadradas começaram a zurrar, em protesto, «Queremos passar! Queremos passar! Queremos passar!» E foram avançando em bloco, de maneira a forçar a entrada na ponte. Os dois mastins atiraram-se às canelas dos da frente, mas levaram de imediato uns pares de coices que os mandaram pelos ares.
«Deifa-os uá», disse um deles, com os queixos em mau estado, «fão apfendef da piof maneifa». E foram ambos embora, com o rabo entre as pernas, contar ao rei o que se tinha passado.
As bestas exultaram, em altos zurros, «A nós, ninguém nos pára! Queremos passar e vamos passar». E correram para a ponte, todos à molhada, a ver quem passava primeiro.
Claro que aquilo que os cães de guarda tinham dito era verdade. A ponte estava em muito mau estado e começou a ranger e a abanar. Os da frente, apercebendo-se do que estava a acontecer, gritaram para os de trás «Parem, voltem para trás, a ponte não vai aguentar, os cães tinham razão».
Mas os que vinham mais atrás não quiseram ouvir e começaram a empurrar os da frente, zurrando «Queremos passar! Queremos passar! Queremos passar!»
A ponte não aguentou o peso de tanta besta e ruiu enquanto o diabo esfrega um olho, atirando todos sem excepção para as águas tumultuosas do rio.
Poucos escaparam com vida, bradando depois que tudo aquilo tinha acontecido porque os dois cães, por ordem do rei, tinham estragado a ponte de propósito.

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