segunda-feira, 30 de março de 2020

A falta de paciência do jogo das paciências (11)


No dia seguinte, o senhor Semedo ainda ria, quando se lembrava da história contada pelo cinco de copas. Tinha sido um serão espectacular, pensava ele, esperando que o desse dia fosse igual.
Depois de jantar, voltou a colocar o espelho no sítio do costume e chamou o jóquer, que apareceu imediatamente.
- Interrompi alguma coisa? - perguntou o homem.
O jóquer acenou a cabeça negativamente.
- Não senhor. Já estávamos todos à tua espera. Vamos à próxima história? Prepara as cartas e vamos a isso.
O senhor Semedo baralhou as cartas e colocou-as sobre a mesa como de costume. Num gesto decidido, pegou numa e virou-a ao contrário. Desta vez, saiu-lhe uma quadra de espadas.
A carta fez a continência e bradou, batendo os tacões das botas um no outro:
- Quatro de espadas ao seu serviço!

O senhor Semedo agradeceu e tentou saber como iam as coisas dentro do baralho.
- O Valete de Paus e a Rainha de Copas ainda estão aborrecidos comigo?
O quatro de espadas explicou que o Valete de Paus já tinha posto uma pedra sobre o assunto, mas que a Rainha de Copas era a mais quezilenta de todos e continuava amuada. Era já um velho habito seu ordenar que se cortasse a cabeça a quem a contraiasse.
- Deixe lá, senhor - disse a carta. - Manias da realeza. Todos uns emproados, armados em finos. Mas, no fundo, não resistem aos impulsos que afectam o comum dos mortais. A propósito, tenho uma história muito engraçada para contar, sobre um rei que uns antepassados meus conheceram.
O senhor Semedo e o jóquer acomodaram-se nas respectivas cadeiras e a carta de jogar iniciou a sua narrativa:
- Rezam as crónicas que um dos entretenimentos da corte quinhentista portuguesa era um jogo de cartas denominado Jogo de Primeira. Numa certa noite de Inverno, estando o jovem rei D. Sebastião enfadado, ao ver um grupo de moços fidalgos da sua idade numa partida de cartas, manifestou vontade de aprender como se jogava. O seu aio, D. Aleixo de Meneses, correspondeu ao pedido e começou a ensinar-lhe as regras e procedimentos do jogo. No entanto, convocado para ir tratar de outro assunto, chamou um moço fidalgo que também sabia jogar e pô-lo em seu lugar para que ensinasse el-Rei enquanto ele não chegasse.
Quando D. Aleixo voltou, bastante tempo depois, o moço quis devolver-lhe a missão, mas ele disse-lhe que continuasse e pôs-se de lado, a ver. Reparou então que o moço não tinha ensinado o rei a jogar apenas segundo as regras canónicas. D. Sebastião estava a ganhar todas as partidas, em grande parte, à força de batota, que o outro jovem lhe ia segredando por trás.
D. Aleixo pegou no moço por um braço e ordenou-lhe, irritado «Arredai-vos para lá que eu deixei-vos aí detrás de el-Rei para o ensinardes a jogar, mas não para o ensinardes a ganhar».
Foi grande a risada que o relato deste episódio anedótico provocou. O senhor Semedo apertava a barriga enquanto ria e as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo.
O quatro de espadas agradeceu e continuou:
- Dizem as más línguas que Dom Sebastião se tornou um ferrenho adepto desse jogo. E até que foi assim que ocupou a noite anterior à batalha de Alcácer Quibir. No entanto, de nada lhe valeram as manhas da jogatina, porque perdeu a peleja e o reino. Ninguém tem a certeza se perdeu também a vida nessa aventura trágica. Por isso, durante muitos anos, os seus súbditos ficaram à espera que voltasse numa manhã de nevoeiro, para os salvar do domínio filipino.
O senhor Semedo rematou:
- Parece que ainda há gente à espera dele! Ou de um outro D. Sebastião qualquer que nos venha salvar. Mas se não soubermos salvar-nos a nós próprios, ninguém nos salvará.
Por alguns momentos, ficaram todos em silêncio, até que o jóquer disse uma laracha e trataram das despedidas, dado que já era bastante tarde. O senhor Semedo bateu a continência ao quatro de espadas, agradeceu e voltou a juntá-lo ao baralho, que arrumou.

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