(A propósito do Dia Internacional do Livro Infantil)
O chiar das rodas da carroça ecoa entre as fragas, entrecortado pelo resfolegar do pequeno cavalo que, penosamente, a puxa. A ladeira é íngreme e o piso irregular. O almocreve dormita, reclinado no banco, com as rédeas pousadas sobre os joelhos. Os olhos semicerrados mal vêm a poeira que se levanta na tarde quente.
À falta de estímulo, cansado da carga pesada, o animal abranda o passo e depois estaca, acordando o homem.
- Então, Marengo, que se passa? Estás cansado? - diz ele para o animal. - A jornada já vai longa, compreendo, mas temos de chegar antes do cair da noite.
Faz estalar a língua e sacode as rédeas, a dar sinal de partida, mas o cavalinho não reage. O almocreve passa a mão pelo chicote, mas desiste da intenção. Desce da carroça atulhada e chega-se ao animal. Pega-lhe no cabresto e puxa-o.
- Já falta pouco, anda. Quando chegarmos, dou-te ração reforçada e uma boa celha de água - promete.
Lentamente, retomam a viagem, debaixo do sol abrasador, caminhando lado a lado.
A vilória fica no alto do cabeço, já se vêm as velhas casas de telhado baixo.
Não tarda, estão os dois na taberna do lugar, um dentro e outro fora, a saciar a fome e a sede.
Pouco depois, o almocreve abre o toldo da carroça e lança o seu pregão.
Homens e mulheres vêm olhar as novidades: panelas e tachos, louças e talheres, baldes e alguidares, toalhas, lençóis e fronhas, botas e roupas de trabalho, ferramentas e outros utilitários, ocupam o bojo da carroça, como arca mágica e inesgotável.
O negócio dura pouco mais de duas horas, até que o crepúsculo torna impraticável a análise das mercadorias. Alguns vieram só ver, voltarão pela manhã, com a bolsa a tilintar e a vontade de comprar.
O almocreve instala-se para a noite. Dormirá numa enxerga, debaixo da carroça, embalado pela luz das estrelas e pelo latir dos cães. Marengo será a sua companhia.
Antes, no entanto, há um ritual a cumprir. Depois da ceia, todas as crianças do povoado se juntam no largo em frente. Correu rápida a notícia de que chegou o «almocreve das letras», que vende um pouco de tudo e lê histórias a quem as quiser ouvir.
O almocreve senta-se em frente à sua audiência e abre um grosso volume encadernado. As letras douradas brilham à luz da candeia: «Contos de Andersen».
- Estava muito agradável no campo. O ar rescendia a Verão; o milho estava amarelo; a aveia estava pronta a ser ceifada... - lê ele em voz alta, desfiando a história de um patinho que não era como os outros, foi rejeitado por todos, mas que acabou por se transformar num belo cisne.
Além da sua voz, apenas se ouve a orquestra dos insectos nocturnos e o respirar ansioso das crianças, que batem palmas quando o conto chega ao fim. A cena repete-se uma e outra vez. Há risos na história do duende da mercearia, lágrimas na do rouxinol. Até que se começam a ouvir as vozes das mães, a chamar para a cama.
A última criança a partir, pergunta.
- Foste tu quem inventou essas histórias?
O almocreve ri-se:
- Não, que ideia. Foi um senhor dinamarquês chamado Hans Christian Andersen.
- Fica muito longe, a terra desse senhor?
- Sim, fica, mas ele andou por cá, em visita. O Andersen gostava muito de viajar. E de escrever, mas as suas obras mais famosas são as que inventou para as crianças, que são conhecidas em todo mundo. Também ele era um «almocreve das letras».
Já sozinho, o almocreve lê mais uma história, agora apenas para si. Adormece pouco depois e sonha com um país longínquo onde toda a gente sabe ler.
Na manhã seguinte, depois do último cliente fechar o negócio, atrela o cavalinho. Algumas crianças acenam em despedida, enquanto a carroça desce a ladeira, enchendo o ar com o chiar das rodas.
Sem comentários:
Enviar um comentário